Usuário de esteroides anabolizantes é um perfil de paciente cada vez mais comum no consultório de cardiologia. Em muitos casos, são pacientes assintomáticos do ponto de vista cardiovascular, com exames de imagem convencionais dentro da normalidade, porém já com dano cardíaco estabelecido, mas ainda não detectado.
Não à toa, o uso de técnicas ecocardiográficas avançadas vem ganhando importância nesse contexto. Strain cardíaco pela técnica de speckle tracking associado à análise do trabalho miocárdico, em repouso e durante o esforço, tem sido a recomendação para a avaliação da toxicidade cardíaca induzida por esteroides anabolizantes (EAA), pois conseguem detectar alterações em fases precoces sem que haja alterações nos parâmetros ecocardiográficos convencionais, ou seja, identifica a doença numa fase ainda subclínica.
Trago um estudo recém publicado de autoria da Dra. Renata Castro junto com o professor da Ecope João Giffoni, referências em cardiologia do esporte, que trata justamente da importância da detecção da disfunção sistólica subclínica em pacientes usuários de EAA.

Apesar do primeiro caso de doping por uso de análogos da testosterona ter sido reportado em 1954, foi a partir dos anos 2010 que vários estudos passaram a documentar a possibilidade de efeitos cardiovasculares adversos relacionados à terapia de reposição hormonal com testosterona. Basaria et al., por exemplo, publicou uma série de estudos confirmando uma maior incidência de infarto agudo do miocárdio em idosos que faziam reposição transdérmica de testosterona em comparação com grupo placebo.
Mais recentemente, Lincoff et al. publicou um estudo com grande repercussão em que 5.246 homens com alto risco cardiovascular (ou com doença já estabelecida) e hipogonádicos foram observados prospectivamente e randomizados para receber terapia de reposição com testosterona em gel ou placebo. Após um seguimento médio de 33 meses, não houve aumento de número de eventos cardiovasculares entre os pacientes em reposição hormonal*. Contudo, nesta população, foi observado uma incidência maior de fibrilação atrial (FA), trombose e piora da função renal.
*Vale destacar que os pacientes tinham indicação de reposição hormonal, ou seja, tinham hipogonadismo, e mantiveram a testosterona em níveis séricos fisiológicos. Portanto, foi uma população muito diferente daquela que estamos habituados a encontrar no consultório: jovens em uso de doses suprafisiológicas, algumas vezes com diferentes ésteres de testosterona de forma concomitante (e até mesmo uso de substâncias veterinárias) com objetivos estéticos ou de melhora de performance.
Windfeld-Mathiasen et al., publicou uma cohort com indivíduos flagrados no anti-doping (1.189) e grupo controle (59.450) foram acompanhados durante um período médio de 11 anos. Neste estudo, o risco relativo de morte foi 2.81 vezes maior entre os indivíduos com histórico doping, sendo câncer e doenças cardiovasculares as principais causas de morte não violenta neste grupo.
O presente estudo, retrospectivo e observacional, avaliou análises ecocardiográficas realizadas em atletas de fisiculturismo. Os critérios de inclusão foram (1) idade > 18 anos, (2) ser praticante de fisiculturismo por pelo menos 5 anos (treino de força, 5-6 vezes/semana), (3) sem doença crônica conhecida, (4) não ser tabagista, (5) sem uso habitual de medicações que não o uso de EAA por pelo menos 03 anos ou (6) nunca ter feito uso de EAA.
Todos os pacientes avaliados eram assintomáticos e não tinham nenhum sinal clínico de disfunção ventricular.

Todos os participantes do estudo apresentavam parâmetros convencionais da ecocardiografia bidimensional normais. Ainda assim, entre usuários de EAA foi observado uma maior massa ventricular esquerda e maior volume do átrio esquerdo (AE) quando comparado com não usuários de EAA. Apesar do grupo de EAA ter apresentando menor fração de ejeção (FE) do ventrículo esquerdo (VE), nenhum apresentou este parâmetro < 50%.

Contudo, apesar de FEVE > 50% em todos os participantes usuários de EAA, quando comparados com os pacientes não usuários, eles apresentaram strain global longitudial (SGL) do VE reduzido, bem como strain do ventrículo direito (VD).
Todos os usuários de EAA tinham SGL < 18%, sendo que 11 deles (78%) tinham SGL < 16%, indicando disfunção ventricular esquerda.

Quando realizada a análise do trabalho miocárdico, os usuários de EAA apresentaram menores valores de trabalho construtivo, maiores valores de trabalho desconstrutivo, resultando em menor eficiência global do VE.

Portanto, fica aqui documentado que, mesmo com parâmetros convencionais normais, os usuários de EAA apresentam disfunção sistólica que pode ser detectada pelo emprego de técnicas ecocardiográficas avançadas.
O SGL já é uma ferramenta amplamente utilizada e que se mostra como um preditor independente de eventos adversos, sendo superior que a fração de ejeção para avaliar a função sistólica.
Assim, quando falamos em toxicidade por EAA, é preciso “saber procurar o problema”, caso contrário poderemos deixar passar uma doença já estabelecida, refletindo em piores desfechos no médio e longo prazo.

Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN) e em Cardiologia pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.