VENTRÍCULO DIREITO: COMO AVALIAR – Parte 3

Alterações da mecânica e geometria do VD

Quando o VD modifica as suas condições de carga por motivos fisiológicos (exercício continuado) ou patológicos (sobrecarga volumétrica, sobrecarga pressórica ou alterações estruturais) sofre um processo de remodelamento. Denomina-se remodelamento, em geral, a ocorrência de câmbios moleculares, celulares e alterações do interstício que se manifestam como mudanças no tamanho, forma e função do coração após uma lesão cardíaca ou sobrecarga pressórica ou volumétrica (1) (Figura 9).

Figura 9. O remodelamento do VD provocado pela constrição arteríolar é mediado pelo micro RNA-21, que estimula a mitose das miofibrilas promovendo o remodelamento (Chang et al, J Molec Cell Cardiol 2021; 154:106).

O processo de remodelamento do VD pode ocorrer em resposta ao aumento da pós-carga, como acontece na hipertensão arterial pulmonar (HAP) e à sobrecarga volumétrica, como ocorre na comunicação interatrial (CIA), agindo vários fatores entre os quais se destacam a hipertrofia concêntrica e excêntrica e os mediadores de inflamação (2). Assim, tanto o aumento da pressão como o aumento do volume provocam remodelamento relacionado à elevação do estresse sistólico parietal, seja pelo incremento da pressão, do tamanho da cavidade, ou ambos (Figura 10).

O estresse parietal diminui com o aumento da espessura das paredes (3). Quando o remodelamento se torna crônico o ventrículo pode estar compensado (adaptado pelo aumento de espessura parietal) ou descompensado (mal adaptado, se a hipertrofia foi insuficiente). Há estudos que sinalizam evolução adversa nos pacientes com remodelamento mal adaptado do VD, havendo maior incidência de morbidade e mortalidade. Este tipo de evolução está relacionado com o tipo de hipertrofia, sendo a forma concêntrica, com relação entre o volume e a massa do VD <0,46, mais benigna do que a forma excêntrica, com relação entre o volume e a massa >0,46, parâmetros estes aferidos pela RM (4).

Figura 10. Tipos de remodelamento do VD. (Salvo AJS. Am Coll Cardiol 2020)

Como o VD sofre constante influência de fatores nervosos, humorais e eletrofisiológicos, apresentando mecanismos intrínsecos de adaptação do débito às mudanças hemodinâmicas, vários mecanismos ocorrem durante o processo de remodelamento: o aumento do volume diastólico final devido ao aumento da resistência pulmonar (pós-carga) ou ao aumento do retorno venoso (pré-carga) é imediatamente sucedida de uma contração mais enérgica, conforme determinado por Frank Starling em 1918 (5). Como este processo se esgota em curto período de tempo pela impossibilidade do VD, devido à pouca espessura parietal, manter níveis mais elevados de pressão, após alguns minutos entra em jogo um poderoso mecanismo fisiológico de adaptação ao abrupto aumento da pós carga, descrito por Anrep em 1912 (6) (Figura 11), deflagrado pela liberação de angiotensina II culminando, após complexas alterações moleculares, com o progressivo aumento da oferta de cálcio para as miofibrilas através da ativação do mecanismo trocador de sódio/cálcio (7), mantendo-se, desta maneira, a resposta inotrópica.

Figura 11. Gleb Von Anrep (1891-1955).

O mecanismo de adaptação do efeito Anrep pode ser parcialmente mensurado pelo acoplamento ventrículo-arterial, considerado padrão ouro para a avaliação da função do VD na HAP, que relaciona a elastância de final de sístole ventricular (Ees, relação entre a pressão sistólica final e o volume sistólico final) com a elastância arterial (Ea, relação entre a pressão sistólica final e o volume de ejeção) (8). O acoplamento ventrículo-arterial direito ótimo, que mantém o fluxo de ejeção com o mínimo custo energético, corresponde a uma relação Ees/Ea de aproximadamente 1,5 a 2,0 (9).

O conceito de acoplamento ventrículo-arterial surge do fato de que o coração e o sistema arterial são estruturas funcionalmente interligadas, ou seja, à ação de bomba do coração se opõe a resistência oferecida pelo sistema arterial. Enquanto Ees corresponde à contratilidade ventricular, Ea representa as forças opostas extracardíacas à ejeção ventricular, ou seja, a pós-carga arterial. Pode ser representado pela curva de pressão-volume obtida em um ou vários batimentos sucessivos. As diferenças entre VD e VE são devidas à baixa resistência pulmonar, que faz a ejeção ventricular ocorrer mais tardiamente e o traçado não apresentar uma forma tão retangular quando a do VE (10) (Figura 12).

Figura 12. Relação pressão-volume do VD (esquerda) e do VE (direita) durante a oclusão da veia cava inferior (diminuição da pré-carga) observando-se diminuição relativa tanto da pressão como dos volumes ventriculares.

Ao diminuir gradativamente a pré-carga, formam-se diferentes curvas de pressão-volume (Figura 13 A). A linha tracejada (ESPVR) conecta os pontos de final de sístole ou pontos de máxima elastância (pontos vermelhos) ou, ainda, relação pressão-volume de final de sístole. A rampa corresponde a máxima elastância ou Ees. A linha ESPVR também intercepta o eixo do volume no ponto chamado V0, que hipoteticamente representa o volume com carga zero. Ees define o estado contrátil do ventrículo e é relativamente insensível às modificações da carga. Os pontos azuis correspondem à relação pressão-volume diastólica, caracterizando as propriedades viscoelásticas do miocárdio durante a diástole. Quando muda a contratilidade, Ees muda proporcionalmente (Figura 13 B).

Figura 13. A: Curva pressão-volume a diferentes cargas. Os pontos vermelhos correspondem aos pontos de máxima elastância (Ees) diminuindo com a redução da pré-carga. Os pontos azuis correspondem à relação pressão-volume diastólica. B: mudanças da Ees durante o aumento da contratilidade (dobutamina) e a diminuição da contratilidade (esmolol) demonstrado pelas diferentes inclinações da rampa.

As mudanças da pós-carga também alteram proporcionalmente a elastância arterial (Ea). O ponto de intersecção das rampas de Ees e Ea corresponde ao acoplamento ventrículo-arterial (Figura 14).

Figura 14. Modificações da pós-carga sobre a curva de pressão-volume. O aumento da pós-carga (fenilefrina) inclina a rampa para a direita e a diminuição da pós-carga (nitroprusiato) inclina a rampa para a esquerda.

A maioria das publicações sobre remodelamento do VD estão relacionadas à hipertensão pulmonar, primária ou secundária. Poucos estudos abordam o remodelamento do VD consequência da sobrecarga volumétrica da cavidade, como ocorre, por exemplo, na CIA (11), na insuficiência pulmonar (12), na insuficiência tricúspide (13) e em outras patologias que apresentam relativa preservação da pressão arterial pulmonar.

A determinação do tipo de remodelamento, assim como o tipo de resposta ao aumento da pós-carga ou dilatação do VD é importante para o prognóstico, acompanhamento e tratamento dos pacientes, pois define a adaptação ou má adaptação da cavidade.

A avaliação da função atrial direita, pela análise volumétrica ou pelos parâmetros de deformação também está relacionada com o grau de adaptação do VD (14) e merece especial atenção.

Referências bibliográficas

  1. Cohn JN, Ferrari R, Sharpe N. Cardiac remodeling – Concepts and clinical implications: a consensus paper from an International Forum of Cardiac Remodeling. J Am Coll Cardiol 2000; 35:569–582.
  2. Sydykov A, Mamazakypov A, Petrovic A, et al. Inflammatory mediators drive adverse right ventricular remodeling and dysfunction and serve as potential biomarkers. Front. Physiol. 9:609.
  3. Mosby’s Medical Dictionary, 9th edition. © 2009, Elsevier.
  4. Badagliacca R, Poscia R, Pezzuto B, et al. Right ventricular remodeling in idiophatic pulmonar arterial hypertension: adaptative versus maladaptative morphology. J HeartLungTransplant 2015; 34:395–403.
  5. Shiels HA, White E. The Frank–Starling mechanism in vertebrate cardiac myocytes. J Exp Biol 2008: 211:2005-2013.
  6. Alvarez BV, Perez NG, Ennis IL, et al. Mechanisms underlying the increase in force and Ca2+ transient that follow stretch of cardiac muscle. A possible explanation of the Anrep effect. Circ Res. 1999; 85:716-722.
  7. Allen DG, Kurihara S. The effects of muscle length on intracellular calcium transients in mammalian cardiac muscle. J Physiol 1982; 327: 79-94.
  8. Antonini-Canterin F, Poli S, Vriz O, et al. The Ventricular-Arterial Coupling: From Basic Pathophysiology to Clinical Application in the Echocardiography Laboratory. J Cardiovasc Echography 2013; 23(4):91-95.
  9. Vanderpool RR, Pinsky MR, Naeije R, et al. Right Ventricular-Pulmonary Arterial Coupling Predicts Outcome in Patients Referred for Pulmonary Hypertension. Heart. 2015; 101(1): 37–43.
  10. Garcia MIM, Santos A. Understanding ventriculo-arterial coupling. Ann Transl Med 2020;8(12):795-899.
  11. Lopes A A, Mesquita SMF. Atrial septal defect. In adults: does repair always mean cure?. Arq Bras Cardiol. 2014; 103(6):446-448.
  12. Nakamura A, Horigome H, Seo Y, Ishizu T, Sumazaki R. Right ventricular remodeling due to pulmonary regurgitation is associated with reduced left ventricular in surgically repaired tetralogy of Fallot. Circ J 2014; 78: 1960–1966.
  13. Dietz MF, Prihadi EA, Bijl P, Goedemans T, Mertens BJA, Gursoy E et al. Prognostic implications of right ventricular remodeling and function in patients with significant secondary tricuspid regurgitation. Circulation. 2019;140:836–845.
  14. Mouratoglou SA, Dimopoulos K, Kamperidis V, Feloukidis C, Kalifatidis A, Pitsiou G et al. Right Atrial Function Predicts Clinical Outcome in Patients with Precapillary Pulmonary Hypertension. J Am Soc Echocardiogr 2018; 31(10): 1137-1145.
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