INTERPRETANDO O GUIDELINE DE ESTENOSE MITRAL REUMÁTICA ASE 2022.

Introdução.

Recentemente foi publicado um novo guideline da American Society of Echocardiography sobre critérios para o diagnóstico de doença valvar reumática.

Como habitualmente acontece, causou certo grau de polémica, principalmente pelo conceito de gravidade do acometimento, principalmente da valva mitral.

Vamos tentar analisa-lo e avaliar o que muda com relação à intensidade do acometimento crônico da valva mitral e por quê.

 Na introdução faz uma análise da importância da doença reumática no contexto mundial, sua prevalência e sua relação com o subdesenvolvimento social de países menos favorecidos economicamente, destacando a dificuldade do diagnóstico apenas com dados clínicos. Destaca, também, a incidência da doença em países industrializados pelas correntes migratórias no mundo globalizado, colocando a ecocardiografia como importante ferramenta para a identificação precoce, tanto da cardite reumática aguda como da doença reumática crônica.

Doença reumática aguda.

Após descrever a fisiopatologia da forma aguda, seus mecanismos de infecção por estreptococos beta-hemolíticos do grupo A e suas formas de apresentação mais frequentes, descreve o mecanismo da forma crônica, relacionada a um processo imunitário no qual cumpre importante papel a susceptibilidade individual.

A ecocardiografia como método diagnóstico do acometimento reumático agudo foi incorporada recentemente (2015) aos critérios de Jones, para as formas de cardite subclínica, sendo os itens mais importantes a presença de refluxo mitral ou aórtico patológico e mudanças morfológicas nas valvas cardíacas devidas à valvulite mitral ou aórtica. As alterações morfológicas podem estar ausentes na fase inicial da doença, mas quando ocorrem são mais frequentes na borda de coaptação dos folhetos.

Cardite reumática aguda em paciente de 14 anos, sexo feminino. Observa-se importante refluxo valvar com falha de coaptação dos folhetos e espessamento da borda de coaptação da valva mitral, ademais de grande dilatação do átrio esquerdo e presença de derrame pericárdico.

A seguir, o guideline descreve as formas reumáticas crônicas.

Estenose mitral reumática.

A doença reumática é a principal causa etiológica da estenose e da insuficiência mitral, caracterizada por espessamento dos folhetos e fusão comissural com progressiva diminuição da área valvar. A calcificação é observada nas formas mais importantes. A área mitral normalmente varia de 4 a 6 cm² em adultos, diminuindo progressivamente até <2,5 cm² no acometimento reumático crônico, quando a pressão do átrio esquerdo começa a aumentar provocando remodelamento da cavidade, aumento da pressão venosa pulmonar (dispneia e hemoptise) e eventual hipertensão pulmonar. Os sintomas são acentuados quando há aumento do débito, como no exercício, gestação, hipertireoidismo, anemia ou taquiarritmias.

Embora não exista um valor exato para definir a severidade da estenose mitral, em geral, pacientes com área >2,5 cm² são assintomáticos, entre 1,5 e 2,5 cm² apresentam sintomas discretos e menores de 1,5 cm² são considerados importantes (severos, em inglês).

LEVOU UM SUSTO?

Pois bem, vamos analisar este ponto.

Quando analisamos estenose mitral devemos utilizar vários parâmetros, que aparecem na tabela abaixo, retirada do guideline:

É a concordância de todos esses parâmetros que define a severidade da estenose. Assim, por exemplo, uma área de 1,3 cm² com gradiente médio de 7 mmHg e pressão pulmonar de 40 mmHg pode ser considerada de grau moderado (interpretação minha), mas em casos em que as variáveis são inconsistentes ou incongruentes, pode se fazer um teste de esforço físico ou farmacológico.

Conforme definição da World Heart Federation, define-se como estenose mitral um gradiente >4 mmHg com ao menos duas alterações morfológicas consistentes com acometimento reumático.

Do ponto de vista da morfologia valvar alguns critérios devem ser cuidadosamente observados para definir o grau da estenose, pois apresentam importantes implicações terapêuticas (valvotomia por balão ou cirurgia):

  1. Fusão comissural;
  2. Espessamento dos folhetos com ou sem calcificação;
  3. Restrição do movimento com morfologia em pau de hockey ou domo durante a diástole;
  4. Espessamento e encurtamento das cordoalhas tendíneas.
Estenose mitral reumática demonstrando o movimento em domo e a abertura em “boca de peixe”.

Importante destacar o posicionamento do eco 2D para o cálculo da área valvar por planimetria, podendo haver alguns fatores que induzem erro nessa medida. Recomendamos, no corte paraesternal longitudinal, durante a diástole, medir a menor distância entre as cúspides para, quando realizar o corte transversal, fazer a medida correta.

A calcificação do anel mitral observada em pacientes idosos diferencia-se do acometimento reumático por não apresentar fusão comissural, não espessar a borda livre dos folhetos e, em geral, apresentar graus menores de estenose. Na forma congênita os folhetos tem textura normal, afunilando-se na direção de um músculo papilar único, com cordoalhas encurtadas.

Calcificação senil do anel mitral (esquerda) e valva mitral em paraquedas (direita).

Considerações hemodinâmicas.

Consistem no cálculo do gradiente médio, da área pelo método da média pressão (PHT) e das pressões do átrio direito e arterial pulmonar.

Os gradientes devem ser obtidos alinhando o Doppler com a direção do fluxo, em geral desde a posição apical, usando geralmente o Doppler contínuo. Os gradientes são dependentes do fluxo e da frequência cardíaca, que deve ser considerada ao realizar as medições. Em casos de ritmo irregular ou fibrilação atrial deve-se calcular a média de pelo menos 5 batimentos cardíacos.

O PHT calcula o tempo que demora a pressão transmitral até atingir a média pressão, comparada com o tempo que demora uma válvula de 1 cm² (tempo determinado na década de 70 por Liv Hatle como sendo de 220 ms). Assim, a fórmula para o cálculo da área de fluxo é:

Área mitral (cm²) = 220/PHT

Esta área geralmente é menor que a determinada por planimetria e é influenciada pela complacência atrial e ventricular, pela pressão diastólica do VE e pelo refluxo aórtico, se coexistente.

Cálculo do gradiente médio na estenose mitral e da área pelo método do PHT.

Pode ser também utilizada a equação de continuidade para o cálculo da área mitral, mas o método tem limitada reprodutibilidade devido a vários fatores de erro no cálculo dos parâmetros e nas assunções geométricas, sendo pouco útil quando há refluxo aórtico ou mitral associado.

O método PISA assume que o orifício da valva mitral é circular, o que geralmente não acontece, limitando sua utilidade.

Com relação ao eco de estresse físico ou farmacológico, um aumento do gradiente mitral >15 mmHg com exercício ou >18 mmHg com dobutamina pode explicar dispneia de esforço devida a fatores hemodinâmicos e identificar pacientes de maior risco que podem ser beneficiados com a intervenção. O aumento da pressão pulmonar induzida por esforço >60 mmHg também indica estenose mitral significativa.

Observação pessoal.

Conforme o guideline, a função sistólica na estenose mitral habitualmente encontra-se preservada, porém, estudos utilizando deformação miocárdica (strain longitudinal) tem mostrado diminuição subclínica da função sistólica, diretamente relacionada com a área valvar e os gradientes transvalvares médio e máximo. O remodelamento atrial provoca diminuição da deformação longitudinal da cavidade.

Strain longitudinal do VE e do AE diminuídos em paciente com estenose mitral reumática.

Outra importante metodologia ecocardiográfica é o eco tridimensional, que permite, além de visualizar a valva mitral em todos seus ângulos, atrial, ventricular, o cálculo mais preciso da área por planimetria, assim como identifica o grau e extensão da calcificação.

Ecocardiograma tridimensional com cálculo de área valvar por planimetria em paciente com estenose mitral reumática.

O guideline considera também a insuficiência mitral e a disfunção aórtica, que não serão tratados neste blog.

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Marco Aguiar

excelente revisão. Parabéns mais uma vez.

Catarina Cavalcanti

Resumo excelente! Muito claro e didático! Parabéns!

Adriano Mendes

Muito esclarecedor , parabéns.

Marcia Campos

excelente texto! Parabéns

joao tress

Sensacional , muito obrigado.

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