Insuficiência Mitral: aspectos etiopatológicos

Muito em breve daremos início a uma série, chamada “passo a passo”, com o objetivo de demonstrar, de forma objetiva e ilustrativa, como realizar determinadas medidas ecocardiográficas no contexto de valvopatias.

A ideia é facilitar a execução técnica para determinar e quantificar alterações valvares comumente encontradas no nosso dia-a-dia. Inicialmente, serão abordadas as medidas e cálculos relacionados à insuficiência mitral. Antes, contudo, vamos fazer um breve resumo sobre a insuficiência mitral.

Cerca de 70% dos indivíduos normais apresentam-se com regurgitações valvares consideradas como fisiológicas. A insuficiência mitral (IMi) detectada ao Doppler colorido com baixa intensidade, envelope espectral mal definido e ausência de altas velocidades encontra-se presente em 40-50% das pessoas com coração estruturalmente normal e não deve, portanto, ser apontada como patológica.

Diante de uma insuficiência mitral, o ecocardiografista deve identificar o grau e o mecanismo desta alteração, bem como avaliar a presença de repercussão hemodinâmica nas câmaras esquerdas e a pressão pulmonar.

Dividida em duas categorias, a insuficiência mitral pode ser caracterizada como primária (orgânica), na qual estão presentes as patologias que acometem intrinsicamente o aparelho valvar, e secundária (funcional), em que há distorção do aparelho valvar por remodelamento do VE e/ou do AE.

Dentre as causas mais comuns de insuficiência mitral primária, podemos citar:

  • Doença Reumática: na forma crônica, observa-se espessamento das cúspides (especialmente nas bordas livres), fusão comissural, abertura em cúpula da cúspide anterior, acometimento do aparato subvalvar, rigidez e redução da mobilidade da cúspide posterior;
Acometimento reumático da valva mitral – imagens retiradas de Pena Vieira, ecocardiografia e imagem cardiovascular, 2020
  • Prolapso de Valva Mitral: deslocamento sistólico de qualquer segmento de uma ou ambas as cúspides, ultrapassando 2 mm do plano do anel mitral em direção ao AE. O prolapso de valva mitral (PVM) se manifesta como um espectro de alterações valvares, podendo evoluir desde uma alteração localizada até o acometimento de todo o tecido valvar:
    • Degeneração mixomatosa: espessamento valvar, redundância das cúspides e alongamento das cordas
    • Doença fibroelástica: deficiência localizada de fibrina, colágeno e elastina, sendo comum encontrar espessamento e excesso de tecido caracteristicamente em um único segmento (principalmente o segmento P2) e geralmente associada a corda rota (com refluxo contralateral ao segmento acometido)
    • Doença de Barlow: acometimento de toda a valva, com excesso de tecido, espessamento difuso, prolapso de 3 ou mais segmentos e alongamento de cordas, sendo este último mais comum que ruptura de cordas;
    • Flail: a eversão da cúspide para o AE, relacionada com a ruptura de corda primária também faz parte do espectro de doenças PVM;
Prolapso de valva mitral por Doença de Barlow
Prolapso de valva mitral por Doença de Barlow
  • Endocardite Infecciosa: falha de coaptação das cúspides em decorrência de edema e distorção do tecido valvar pelo processo infeccioso ou pela presença de vegetações;
Ecocardiograma transesofágico demonstrando vegetação na valva mitral – imagens retiradas de Pena Vieira, ecocardiografia e imagem cardiovascular, 2020
  • Calcificação Valvar Senil: associada à alteração do anel mitral e de sua função, levando, mais comumente, a regurgitações discretas;
  • Cardiomiopatia Hipertrofia Assimétrica Obstrutiva: existe alteração no posicionamento dos músculos papilares e movimento sistólico anterior do aparato valvar mitral. O deslocamento do aparato valvar em direção à via de saída do VE gera refluxo excêntrico posterior, direcionado à parede lateral do AE e o grau da insuficiência é dinâmico;
  • Cleft Isolada ou Fenda Mitral: doença congênita definida como uma fenda nas cúspides mitrais, geralmente na anterior, comumente direcionada à dia de saída do VE na ausência de defeito do septo atrioventricular;
Cleft mitral – imagens retiradas de Pena Vieira, ecocardiografia e imagem cardiovascular, 2020
Cleft mitral
Cleft mitral
  • Valva Mitral em Paraquedas: presença de um único músculo papilar;
A – músculo papilar anterolateral (duas setas) normal e o posteromedial (seta) hipodesenvolvido e com localização próxima ao anterolateral; B – cordas tendíneas encurtadas e ligadas ao mm. papilar anterolateral
  • Valva Mitral em Arcada: ausência ou hipodesenvolvimento acentuado das cordas, com as cúspides diretamente ligadas aos papilares;

A IMi secundária decorre da distorção geométrica do aparato valvar mitral na presença da dilatação do VE, alterações segmentares (paredes inferior e inferolateral) ou deformação do anel mitral por dilatação do AE. Nesses casos, as cúspides valvares e suas cordas encontram-se estrutural e histologicamente normais.

1 – acinesia da parede inferolateral; 2 – imagem sugestiva de corda rota relacionada com a cúspide anterior; 3 – jato excêntrico direcionado à parede lateral do AE – imagens retiradas de Pena Vieira, ecocardiografia e imagem cardiovascular, 2020

A dilatação do VE decorrente de doenças musculares ou de isquemia provoca um deslocamento em direção apical e posterior dos músculos papilares. Esse deslocamento, por sua vez, provoca tração das cúspides e restrição de movimentação sistólica das mesmas, dificultando a coaptação. Já nos casos de acometimento mais importante das paredes inferior e inferolateral, geralmente associado a eventos isquêmicos, ocorre tração mais acentuada do papilar posteromedial, com restrição da mobilidade da cúspide posterior e refluxo mitral direcionado à parede lateral do AE.

Dilatação do VE com cordoalhas retificadas por retração apical de mm. papilar

A presença de duplo mecanismo (orgânica e funcional) pode ocorrer em um mesmo paciente.

Alain Carpentier foi um dos pioneiros a tentar entender a patologia da insuficiência mitral e a padronizar os métodos para seu reparo. Ele classificou tal patologia em 3 grupos:

  • Tipo I: insuficiência mitral com mobilidade normal das cúspides (dilatação do anel mitral, perfuração das cúspides ou cleft mitral);
  • Tipo II: insuficiência mitral por hipermobilidade de suas cúspides (prolapso das cúspides por ruptura de corda, ruptura de músculo papilar, alongamento de corda ou alongamento de músculo papilar);
  • Tipo III: insuficiência mitral por redução da mobilidade das cúspides. Subdividida em IIIa, quando a restrição da mobilidade ocorre na diástole (doença reumática), e IIIb, quando ocorre principalmente na sístole, em decorrência da fixação das cúspides por deslocamento do músculo papilar (remodelamento ventricular localizado ou global).

Após essa breve revisão, logo mais vamos iniciar as postagens com o “passo a passo” de medidas que irão ajudar a definir o grau e a repercussão da insuficiência mitral.

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ASTRID

Parabéns Caio!Revisão bem didatica e de fácil leitura👏👏

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