Valva Mitral com 3 Folhetos: uma apresentação rara

A valva mitral é composta por dois folhetos, anterior e posterior, além do complexo subvalvar. Diferentemente do que acontece com a valva tricúspide, por exemplo, a variabilidade de seus constituintes não é frequente.

Por aqui já citamos a valva mitral com folheto único (clique aqui). Desta vez, vamos para o outro extremo e trazer um caso de valva mitral com 3 folhetos.

Descrita pela primeira vez em 2010 por Irwin et al., a presença de 3 folhetos mitrais é considerado um evento raro, com aproximadamente 10 casos descritos na literatura. Com o avanço tecnológico nos métodos de imagem cardíaca, é possível que essa patologia seja mais documentada com o passar do tempo.

Em razão de sua raridade, não está claro se estamos diante de uma doença nova (falha na fusão dos coxins endocárdicos) ou se esta condição faz parte de uma melhor caracterização (pela melhoria técnica dos recursos ecocardiográficos) de clefts isolados de uma valva mitral sem outras alterações ou até mesmo um fenótipo pertencente ao defeito de septo atrioventricular (neste caso, com septo íntegro).

https://doi.org/10.1016/j.amjcard.2017.11.018

Ao ecocardiograma, observam-se 3 zonas de aposição (ou comissuras) equidistantes, com um ponto central de coaptação e presença de músculo papilar acessório, além de conexões atrioventriculares e ventriculoarteriais concordantes.

https://doi.org/10.1016/j.amjcard.2017.11.018
https://doi.org/10.1016/j.amjcard.2017.11.018

Todos os casos na literatura descrevem uma associação com obstrução significativa da via de saída do ventrículo esquerdo (VSVE) ou estenose subaórtica, o que pode levar ao diagnóstico (equivocado) de cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva.

https://doi.org/10.1016/j.amjcard.2017.11.018

Normalmente os sintomas são secundários à obstrução da VSVE e não à disfunção valvar propriamente dita. Em análises com seguimentos maiores, o tempo de evolução para regurgitação valvar significativa é de 10 anos a contar do momento do diagnóstico (normalmente, com regurgitação leve à época).

Vamos exemplificar com um caso clínico!

Barker J, et al. BMJ Case Rep 2019;12:e229106. doi:10.1136/bcr-2018-229106

Em 2002, um paciente do sexo masculino, de 62 anos, portador de hipertensão arterial sistêmica (HAS), dislipidemia e resistência insulínica, foi encaminhado para serviço de cardiologia por queixa de dispneia aos esforços (classe funcional II – NYHA), sem contudo apresentar limitação funcional para as atividades de vida diária.

Ao exame, notava-se sopro sistólico intenso em região de ponta, já previamente detectado em avaliação médica anterior (1984). Eletrocardiograma mostrava ritmo sinusal, sobrecarga atrial esquerda e bloqueio de ramo direito.

À época, o ecocardiograma bidimensional descreveu uma valva mitral com folhetos sem alterações e refluxo valvar discreto, com jato em direção anterior. Notava-se movimento sistólico anterior do folheto anterior e estruturas subvalvares adjacentes, com gradiente significativo em VSVE, variando entre 79-130 mmHg à depender da angulação do transdutor, com pico sistólico precoce. Fração de ejeção do ventrículo esquerdo (VE) preservada e hipertrofia ventricular esquerda, com espessura de parede posterior de 12 mm.

Barker J, et al. BMJ Case Rep 2019;12:e229106. doi:10.1136/bcr-2018-229106

Foi, então, pensando em cardiomiopatia hipertrófica sem, no entanto, haver hipertrofia septal significativa, mas com gradiente significativo na VSVE.

05 anos depois, já em 2007, o paciente passou a apresentar redução da capacidade funcional, tolerando apenas 2 minutos no teste ergométrico sob protocolo de Bruce.

Novo ecocardiograma mostrou aumento do refluxo mitral, agora graduado como moderado, sem outras mudanças significativas. Nesse momento, o paciente foi encaminhada para avaliar possibilidade de ablação alcoólica septal, porém não sendo indicado, naquele momento, pela equipe intervencionista.

Em 2008, o paciente apresentou episódios paroxísticos de fibrilação atrial (FA) e em 2012 desenvolveu clínica de franca insuficiência cardíaca, refluxo valvar mitral importante e hipertensão pulmonar. Não havia, contudo, piora da hipertrofia ventricular ou do fluxo de VSVE.

Neste momento, o paciente recusou cirurgia de troca valvar mitral ou ablação alcoólica.

Em 2015 o paciente realizou ecocardiograma (agora com um aparelho mais sofisticado – GE Vivid E95) que conseguiu caracterizar, de forma mais precisa, a presença de cleft no folheto posterior da valva mitral associado a um discreto prolapso do folheto anterior, confirmados pela reconstrução 3D.

Barker J, et al. BMJ Case Rep 2019;12:e229106. doi:10.1136/bcr-2018-229106
Barker J, et al. BMJ Case Rep 2019;12:e229106. doi:10.1136/bcr-2018-229106
Barker J, et al. BMJ Case Rep 2019;12:e229106. doi:10.1136/bcr-2018-229106
Barker J, et al. BMJ Case Rep 2019;12:e229106. doi:10.1136/bcr-2018-229106

A janela apical 4C mostrou um ventrículo direito morfologicamente normal, excluindo a possibilidade de transposição de grandes artérias congenitamente corrigida.

Barker J, et al. BMJ Case Rep 2019;12:e229106. doi:10.1136/bcr-2018-229106

Ao Doppler, presença de refluxo mitral com jato regurgitante complexo (figura e video 4).

Barker J, et al. BMJ Case Rep 2019;12:e229106. doi:10.1136/bcr-2018-229106
Barker J, et al. BMJ Case Rep 2019;12:e229106. doi:10.1136/bcr-2018-229106

É possível notar a presença de dois músculos papilares, com localização habitual, sendo um deles bífido.

Barker J, et al. BMJ Case Rep 2019;12:e229106. doi:10.1136/bcr-2018-229106
Barker J, et al. BMJ Case Rep 2019;12:e229106. doi:10.1136/bcr-2018-229106

O paciente posteriormente não aceitou nenhum procedimento invasivo e seguiu acompanhamento clínico regular.

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José M. Del Castillo

Excelente demonstração de raridades anatômicas

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