Por aqui o tema “trabalho miocárdico“, aos poucos, vem sendo colocado em pauta. Este novo e muito promissor recurso da ecocardiografia vem ganhando mais espaço e, em muito pouco tempo, deve fazer parte do nosso dia-a-dia.
Trago, portanto, um resumo de uma publicação recente do Journal of the American Society of Echocardiography sobre este recurso e sua aplicabilidade.
#Hipertensão Arterial (HAS):
A hipertensão arterial, como sabemos, leva a um aumento da pós carga, ativando mecanismos compensatórios para manter o débito cardíaco. Numa fase inicial, o trabalho miocárdico aumenta gradualmente sem alterações significativas na fração de ejeção do ventrículo esquerdo (VE) e no strain global longitudinal (SGL).
Contudo, à medida em que o coração vai perdendo sua capacidade adaptativa à pós carga aumentada e ao aumento do estresse parietal nas paredes miocárdicas, o SGL começa a diminuir.
A gravidade da hipertensão arterial tem íntima relação com o aumento do GWI, como também se associa a um aumento do pico de O2 consumido.
Portanto, à medida em que há progressão da doença (no caso, entenda-se “progressão” como controle inadequado da PA), há uma redução do GWE acompanhado de um aumento do GWW, indicando, assim, que o estresse parietal elevado na parede miocárdica e o acoplamento ventrículo-arterial contribuem para uma redução da eficiência da contratilidade miocárdica.
Além da avaliação global, observa-se também um padrão regional em que há valores elevados nos segmentos apicais compensando a contratilidade prejudicada dos segmentos basais (lembrem-se: a ponta sempre “salva”!).
#Estenose Aórtica (EAo):
Nos pacientes com EAo, a estimativa da pressão ventricular esquerda através da pressão arterial (artéria braquial) é prejudicada em razão da obstrução valvar (o que levará a um pico pressórico intraventricular maior que a pressão sistólica periférica). Por esta razão, recomenda-se o uso de um parâmetro em que o valor do gradiente médio do fluxo transvalvar aórtico é adicionado ao valor da pressão sistólica (Fortuni et al, Left Ventricular Myocardial Work in Patients with Severe Aortic Stenosis, Journal of the American Society of Echocardiography, 2021).
Ao utilizar este parâmetro, se observa um aumento significativo do GWI nesses pacientes quando comparado apenas com a utilização da pressão arterial sistólica (PAS), refletindo de forma mais fidedigna o impacto do aumento da pós carga na EAo.
Inicialmente é observado, nesses pacientes, um aumento tanto do GWI quanto do GCW (fase compensada, com contratilidade miocárdica preservada), enquanto que o SGL já pode estar reduzido dada a sua dependência da pós carga. À medida em que a contratilidade do VE começa a diminuir, o GWI e o GCW começam a reduzir e o paciente passa a apresentar sintomas de insuficiência cardíaca.
Mesmo em pacientes assintomáticos, a redução do trabalho miocárdico é um marcador de descompensação e tem se associado a um aumento de mortalidade nessa população.
#Insuficiência Aórtica (IAo):
Aqui ocorre um aumento da pré e da pós cargas. Inicialmente, o volume regurgitante, ao voltar para o interior do VE durante a diástole, reduz o débito cardíaco e aumenta o volume diastólico final do VE. O aumento da pré carga ativa, através do mecanismo de Frank-Starling, uma fase adaptativa em que há um aumento do stroke volume compensando a sobrecarga volumétrica.
Contudo, um stroke volume persistentemente elevado leva a um aumento da pós carga. Com o tempo, a combinação da sobrecarga volumétrica e pressórica vai levar a fibrose miocárdica, o que limita a capacidade do VE de manter essa fase adaptada.
Nos pacientes com IAo moderada ou importante e com FE preservada, ambos GWI e GCW encontram-se elevados. Nesses pacientes, após o reparo valvar, GWI, GCW e o GWE diminuem, enquanto que o GWW se mantém inalterado. Em 28% dos pacientes, o GWI se manteve anormal, mesmo após a troca valvar, sugerindo a presença de dano miocárdico irreversível.
#Insuficiência Cardíaca com Fração de Ejeção Reduzida (ICFEr):
Na IC com fração de ejeção reduzida (ICFEr) o aumento das pressões de enchimento inicialmente ocorre em razão da disfunção contrátil e, em estágios mais avançados, é exacerbada pela disfunção diastólica e do ventrículo direito (VD). Como uma resposta à sobrecarga volumétrica e à perda de miócitos, há um remodelamento excêntrico resultando em aumento cavitário e afilamento das paredes miocárdicas.
A disfunção miocárdica fica evidenciada através da redução significativa do strain global longitudinal, GWI e do GWE.
O índice de trabalho miocárdico, assim como o SGL e a fração de ejeção do VE, é um preditor de mortalidade por todas as causas e hospitalização.
Usando um valor de corte de 455 mmHg% de GWI (AUC = .80; P < 0.0001; sensibilidade 77.4% e especificidade 71.6%) e um valor de 530 mmHg% de GCW (AUC = .80; P < 0.001; sensibilidade 74,2% e especificidade 78.4%) foi observado uma alta acurácia em predizer mortalidade por todas as causas e necessidade de transplante cardíaco ou necessidade de implante de dispositivos de assistência ventricular em pacientes com ICFEr em estágios avançados.
Da mesma forma, o trabalho miocárdico também já foi avaliado como forma de analisar resposta terapêutica. Bouali et al. demonstrou melhora significativa do GWE e do GCW após início de tarapia com sacubitril/valsartana. Foi observado uma melhora precoce do GCW, aos seis meses de tratamento, comparada com a do GWE, cuja melhora foi demonstrada após 12 meses de tratamento. Gonçalves et al., por sua vez, notou uma redução do GWW, embora não de forma significativa.
#Insuficiência Cardíaca com Fração de Ejeção Preservada (ICFEp):
A ICFEp engloba uma diversidade de fenótipos, sendo, portanto, uma condição muito heterogênea. Caracteriza-se por aumento das pressões de enchimento causada pela redução da complacência (relaxamento) e aumento da rigidez miocárdica.
Achados preliminares (em estudos não robustos), demonstram que em pacientes com diagnóstico recente de ICEFEp, o GWW tem boa capacidade de predizer a primeira hospitalização. O padrão é de GWE reduzida e GWW elevado em repouso. Esses indivíduos (GWE reduzido) apresentam uma capacidade aeróbica reduzida, aumento da congestão pulmonar e reserva contrátil atenuada durante o esforço.
Pacientes com ICFEp e hipertrofia ventricular (espessura relativa da parede >0.42) apresentam valores menores de GWE quando comparados com indivíduos saudáveis, enquanto que o GCW apresenta valores similares entre os dois grupos.
#Cardio Oncologia:
Em um estudo retrospectivo que avaliou a fração de ejeção do VE, SLG e trabalho miocárdico em pacientes que fizeram uso de antracíclicos (antes, durante e após a terapia), Zhan et al. demonstrou a superioridade do trabalho miocárdico em detectar disfunção relacionada à quimioterapia de forma mais precoce em relação ao SGL.
Foi observado uma queda de 15% do GWW e do GWI antes que o SGL conseguisse definir critério para cardiotoxicidade por quimioterápicos. É importante destacar, porém, que nesse mesmo estudo foi determinado que a sensibilidade do GWI e do GWE em predizer cardiotoxicidade foi menor que a do SGL, especialmente em pacientes com pouca variabilidade da pressão arterial.
#Doença Arterial Coronariana (DAC):
Embora a DAC possa não interferir diretamente nas pré e pós cargas, a alteração do metabolismo do O2 no miocárdio isquêmico pode impactar no trabalho miocárdico. O GWI e GCW ficam reduzidos de forma significativa nos pacientes com DAC e FE preservada, porém com alteração da contratilidade segmentar.
Após a revascularização, há com frequência uma melhora significativa no GWI, GCW e GWE ao longo dos primeiros meses, o que pode ser atribuído a um miocárdio atordoado.
Para a análise segmentar, um ponto de corte de < 1,623.7 mmHg% para o índice de trabalho miocárdico e < 1,962 mmHg% para o trabalho construtivo deve ser usado para diferenciar segmentos isquêmicos de não isquêmicos.
# Amioloidose Cardíaca:
Aqui, o padrão será muito semelhante ao do SLG, com a presença de apical sparing. Contudo, Stassen et al. demonstrou superioridade do trabalho miocárdico em relação ao SLG para diferenciar amioloidose de miocardiopatia hipertrófica.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.