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A prevalência estimada da artrite reumatoide (AR) é em torno de 0.5-1% da população global e esses pacientes apresentam um aumento de 50% no risco de desenvolver doenças cardiovasculares.
Os pacientes portadores de AR têm uma incidência aumentada de doenças valvares quando comparados com a população geral. Disfunção valvar pode ser observada em até 30% dos casos, contudo costumam ser discretas e silenciosas, sem muito significado clínico. Dentre elas, a regurgitação valvar é a disfunção mais comum (80%).
Endocardite de Libman-Sacks, pericardite/derrame pericárdico e aterogênese acelerada também podem ser complicações cardíacas da AR.
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Ainda, a toxicidade gerada por algumas medicação, que são utilizadas durante longos períodos para evitar progressão da doença, também aumenta a morbimortalidade de pacientes com AR.
Muitos desses pacientes fazem uso, de forma prolongada, de cloroquina/hidroxicloroquina que, apesar de seguras, se relacionam com toxicidade cardíaca e arritmias.
Portanto, temos neste cenário uma via dupla de dano cardiovascular: (1) estado inflamatório da doença gerando disfunções endotelial, microvascular e miocárdica; e (2) toxicidade pelos agentes terapêuticos.
Quanto à cloroquina/hidroxicloroquina, os efeitos adversos relacionados ao uso prolongado, apesar de terem uma incidência não totalmente conhecida, podem envolver distúrbios do sistema de condução (mais frequentemente!) até um quadro de cardiomiopatia irreversível.
A cardiomiopatia induzida pelo uso desses agentes envolve disfunção direta dos lisossomos em razão da inibição de enzimas lisossomais e redução da capacidade de autofagia e da degradação intracelular de debris, levando ao acúmulo patológico de produtos metabólicos (como fosfolipídeos e glicogêneo) no tecido cardíaco.
À histologia, notam-se inclusões granulovacuolares, com uma estrutura lamelar (B) ou curvilinear (C), intracitoplasmáticas (não me perguntem sobre isso, por favor! rsrsrs).
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Essas alterações resultam em disfunção progressiva do sistema de condução, padrão restritivo de cardiomiopatia e redução da função sistólica ventricular.
Aproximadamente 45% dos pacientes podem ter um curso reversível de doença caso o diagnóstico seja precoce e seja realizada a descontinuição da medicação.
Vamos então de caso clínico para exemplificar tudo isso…
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Mulher caucasiano, 59 anos, com queixa de dispneia aos pequenos esforços há 3 meses. Tinha o diagnóstico de AR realizado aos 36 anos de idade, além de ter histórico de neoplasia de mama tratada apenas cirurgicamente, e função renal levemente diminuída.
No momento, estava em uso de hidroxicloroquina, metotrexate, adalimumab, abatacept e lansoprazol. A dose da hidroxicloroquina era de 600 mg/dia nos últimos 23 anos.
Ao exame, presença de turgência jugular patológica, sopro de regurgitação aórtica e outro sopro sistólico em região de ponta, e congestão pulmonar (estertores bibasais).
O ECG mostrava ritmo sinusal, com intervalo PR prolongado, desvio do eixo para esquerda e atraso na condução intraventricular, além de critérios para sobrecarga ventricular esquerda.
Ecocardiograma demonstrou aumento das paredes ventriculares (septo 17 mm / PP 17 mm), disfunção sistólica do ventrículo esquerdo (FE 30%), com acinesia apical. Ainda, observava-se ventrículo direito com hipertrofia e disfunção sistólica, aumento moderado de ambos os átrios e disfunção diastólica grau III (padrão restritivo).
Strain global longitudinal de -4% e presença de refluxos mitral e aórtico leves. NT pro-BNP de 12,698 pg/mL e troponina de 2.07 ng/mL. Foi, então, pensado em alguma doença infiltrativa ou cardiomiopatia hipertrófica em estágio avançado.
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O paciente não apresentava histórico familiar sugestivo e o painel genético para cardiomiopatias foi negativo, incluindo doença de Fabry e amiloidose. Ainda, testes sorológicos e moleculares para vírus também foram negativos.
Doença arterial coronariana foi descartada após realização de cateterismo cardíaco e a ressonância magnética (RM) do coração mostrou realce tardio (30%), com padrão transmural, no ápice e com padrão mesocárdico no septo e parede anterior.
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Uma biópsia endomiocárdica foi realizada, demonstrando a presença de vacuoalização proeminente de miócitos. À microscopia eletrônica, presença de corpúsculos lamelares e agredados de corpúsculos cuvilneares (marcadores específicos de toxicidade por hidroxicloroquina).
Foi realizada a retirada do Adalimumab e da hidroxicloroquina e iniciado terapia para insuficiência cardíaca com carvedilol, losartana, espironolactona. Anticoagulação com varfarina também foi iniciada.
Alguns meses depois, houve também a suspensão do metotrexate em razão do surgimento de fibrose hepática. Para a AR, foi optado por prednisona 5mg/dia.
Apesar disso, não houve melhora da função ventricular esquerda, sendo então optado por implante de cardiodesfibrilador para prevenção primária de morte súbita.
Um ano após o dignóstico e interrupção da hidroxicloroquina, houve uma discreta melhora sintomática, com a fração de ejeção do ventrículo esquerdo de 44% e strain global longitudinal de -10%. A espessura das paredes ventriculares, antes de 17 mm, passou para 12 mm.
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Nesta avaliação, houve redução do NT pro-BNP (2,857 pg/dL), embora ainda com valores muito elevados. Seis meses depois, a paciente apresentou piora clínica significativa, e nova avaliação ecocardiográfica mostrando fração de ejeção do ventrículo esquerdo de 33%, com strain global longitudinal de -5%, insuficiências mitral e aórtica moderadas, e novas alterações da contratilidade segmentar. NT pro-BNP com novo aumento (4.859 pg/mL).
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Nova RM cardíaca mostrou novo realce tardio, com padrão transmural, nos segmentos basal e médio da parede inferolateral.
A paciente apresentou reativação da AR, com acometimento da cintura pélvica e punho, com limitação para deambular, e com achados laboratoriais compatíveis com doença em alta atividade. Foi, portanto, necessário o aumento da dose de corticóide.
Aqui, foi aventada a possibilidade da AR em atividade como fator descompensador da cardiomiopatia, motivo pelo qual foi iniciado tofacitinib. Contudo, apesar dos esforços terapêuticos, a paciente evoluiu com piora da função cardíaca (FE 25%) e refratariedade, sendo submetida à transplante cardíaco posteriormente. A análise microscópica do coração nativo foi compatível com toxicidade por hidroxicloroquina.
No seguimento de 01 ano após transplante, a paciente permanecia em classe funcional I e em remissão da AR com uso de 5 mg/dia de prednisona.
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Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.