A prevalência de trabeculações em excesso no ventrículo esquerdo (VE), em corações de atletas avaliados pela ecocardiografia, preenchendo critérios para cardiomiopatia pode variar de 1-10%. Contudo, quando analisados dados a partir de estudos cadavéricos, não há nenhuma associação direta entre aumento de trabeculações com morte súbita em atletas jovens.
Sabendo que o excesso de trabeculações no VE pode se manifestar como uma forma adaptativa e, portanto, ser um achado sem significado patológico, como então devemos interpretar a presença desse achado nesse grupo específico de pacientes ?
O achado de trabeculação em excesso no VE deve ser valorizado quando na presença de (1) disfunção sistólica associada, (2) dilatação de câmaras cardíacas (que não justificada pela modalidade de treinamento), (3) sintomas cardiovasculares ou (4) alterações eletrocardiográficas não relacionadas ao treinamento de alta intensidade. (5) Histórico familiar de miocardiopatia também deve ser valorizado.
Na ausência desses “red flags“, muito provavelmente estamos diante de um achado adaptativo e não de doença. Tanto é que, desde 2013, os centros esportivos na Inglaterra deixaram de recomendar investigação complementar em atletas com critérios ecocardiográficos de trabeculação em excesso, mas assintomáticos, com função cardíaca normal e eletrocardiograma sem alterações.
Apesar de parecer simples, na prática a coisa é um pouco mais desafiadora. Vejamos esse exemplo:
Homem, 38 anos, triatleta (modalidade de treino predominante: endurance), com histórico de ablação prévia por fibrilação atrial persistente. Ecocardiograma (de rotina) demonstrando disfunção ventricular esquerda leve, com regurgitação valvar aórtica leve, com jato excêntrico, e aumento importante dos diâmetros cavitários do VE, além de trabeculações em excesso (preenchendo critérios de Jenni e de Chin). A partir desses achados, foi diagnosticado com miocárdio não compactado.
Ressonância magnética confirmou um VE severamente dilatado, com função sistólica reduzida de grau leve e com trabeculações em excesso (imagem A), com relação de 3:1 pelo critério de Petersen. Contudo, a regurgitação aórtica foi quantificada como severa (imagens B e C). Ainda, foi observado presença de trombo no apêndice atrial esquerdo – AAE (imagens A e D).
Seis meses após cirurgia de troca valvar aórtica (imagem E) com oclusão do AAE, houve remodelamento reverso significativo, com praticamente melhora da função sistólica, dos volumes e diâmetros do VE (imagens F e G). Foi observada, também, uma redução das trabeculações, passando para uma relação de 2:4 pelo mesmo critério de Petersen.
Se o excesso de trabeculação, neste caso, fosse parte de uma miocardiopatia (doença) e não consequência de um coração treinado, não seria observado uma melhora significativa do VE. Portanto, aqui, a disfunção do VE foi consequência da doença valvar e a presença das trabeculações apenas refletia um VE adaptado à altas cargas de atividade física.
Atletas com sintomas cardiovasculares, alterações eletrocardiográficas (não justificadas pela atividade física) ou histórico familiar de cardiomiopatia devem ser submetidos a uma investigação complementar com teste cardiopulmonar (ergoespiromoetria), holter e ressonância cardíaca.
Remodelamento atrioventricular compatível com modalidade de treinamento, parâmetros de função diastólica normais ou supranormais, função sistólica longitudinal preservada e contratilidade miocárdica normal são todos achados fisiológicos nesta população.
Portanto, não há nenhuma recomendação para que atletas com o achado isolado de trabeculações em excesso sejam desqualificados para a prática de atividade física de alto rendimento.
Gati S, et al avaliou 1146 atletas jovens (idade 14-35 anos), sendo a maioria do sexo masculino (63.3%), de 27 diferentes modalidades esportivas e os comparou com um grupo controle de 415 adultos saudáveis considerados sedentários (<2h de exercício semanal). Para aqueles atletas que preencheram critérios para miocárdio não compactado, foi realizado uma comparação com pacientes com esta cardiomiopatia, contudo não atletas.
Os achados foram semelhantes ao que já foi dito por aqui: atletas apresentaram maior prevalência de trabeculações em excesso quando comparados com o grupo controle (18.3% x 7.0%, p < 0.0001) e 8.1% dos atletas preencheram critério para miocárdio não compactado (doença). As trabeculações em excesso foram mais comuns nos atletas negros e uma pequena quantidade de atletas (n = 10, 0.9%) apresentou disfunção sistólica do VE e alteração da repolarização ventricular documentada no eletrocardiograma, sugerindo a presença do fenótipo doença. Apesar disso, no seguimento médio de 48.6 meses não foram relatados eventos adversos.
Todos os atletas avaliados eram assintomáticos, sem queixas cardiovasculares ou histórico familiar de cardiomiopatia/morte súbita.
Entre os atletas que apresentaram trabeculação em excesso, a prevalência foi similar entre homens e mulheres (20.7% x 18.1%, p = 0.279) e, como dito, mais frequente em atletas afrodescendentes (28.8% x 16.3%, p = 0.002).
Já entre os atletas que preencheram critério para miocárdio não compactado, foi observado uma maior incidência de alterações eletrocardiográficas não relacionadas à atividade física (33% x 14.6%, p < 0.0001), como desvio do eixo para esquerda ou direita, critério de voltagem para hipertrofia ventricular direita e inversão de onda T.
Uma minoria de atletas (n = 10, 0.9%) preencheram critério para miocárdio não compactado e também apresentaram alterações eletrocardiográficas não típicas do atleta associada a disfunção ventricular esquerda – Fração de Ejeção < 50% (ou seja, aquele perfil que demanda investigação!), sendo eles afrodescendentes em 3.4% e caucasiano em 0.5%. Todos, contudo, tinham parâmetros de função diastólica normais Aqui temos a chamada ZONA CINZENTA!!!!
Esses atletas foram então avaliados com holter 48h, teste de esforço convencional com protocolo de Bruce e ressonância magnética cardíaca:
- Nenhum apresentou taquicardia ventricular não sustentada ou > 500 extrassístoles ventriculares nas 48h de exame;
- Todos atingiram pelo menos 90% da frequência cardíaca máxima prevista na ergometria, com comportamento normal da pressão arterial durante o exame;
- Ecocardiograma realizado logo após o esforço não demonstrou alterações;
- Todos preencheram critério de RM para miocárdio não compactado, porém não foi observado presença de realce tardio;
- Durante o seguimento médio de 48.6 meses, todos os atletas permaneceram assintomáticos e livres de eventos adversos.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.