A presença de disjunção do anel mitral (MAD) em pacientes com prolapso da valva mitral (PVM) é um achado que nos direciona para a possibilidade da síndrome arrítmica do PVM.
Na última postagem trouxe uma discussão a respeito da diferenciação da MAD verdadeira daquela não verdadeira, sendo a primeira caracterizada pela presença de disjunção tanto durante a sístole quanto durante a diástole.
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Assim sendo, se considerarmos apenas o fenótipo verdadeiro da MAD, há impacto no que diz respeito à prevalência desse achado em pacientes com PVM??
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O prolapso da valva mitral é uma condição presente em torno de 2-3% da população geral e, embora tenha sido considerada um achado benigno por muito tempo, sabemos atualmente que em um pequeno número de pacientes existe a possibilidade da associação do PVM com arritmias ventriculares malignas e, portanto, morte súbita.
Dentre os diversos fatores que podem se associar a um risco maior da dita síndrome arrítmica do PVM, a MAD é um achado que merece ser destacado.
Estudo retrospectivo com 603 pacientes portadores de PVM mixomatoso avaliados entre os anos 2020 e 2022. Aqueles com (1) imagem ecocardiográfica inadequada, (2) cardiopatia reumática, (3) endocardite, (4) deficiência fibroelástica e (5) intervenção valvar mitral prévia foram excluídos.
O PVM mixomatoso foi considerado aquele com movimento sistólico posterior > 2 mm acima do plano do anel mitral, avaliado na janela paraesternal longitudinal, associado a presença de espessamento anormal do folheto valvar > 5 mm na diástole em qualquer um dos segmentos (proximal, médio ou borda de coaptação).
O abaulamento (curling) do segmento basal da parede ínfero lateral foi definido como uma movimentação hiperdinâmica e anormal desta região durante a sístole, na região do anel valvar mitral posterior, com protrusão do miocárdio adjacente.
Ainda, ≥ 16 cm/s foi a velocidade utilizada para caracterizar o sinal de Picklelhaube, contudo apenas relacionado ao anel valvar lateral.
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A idade média dos pacientes avaliados foi de 53 ± 16 anos, sendo 303 do sexo feminino (50%). Aqueles com inserção habitual do anel valvar, ou seja, sem MAD, (n = 340, 56%) eram mais velhos, predominantemente do sexo masculino, com maior prevalência de hipertensão arterial sistêmica (HAS), dislipidemia (DLP) com pior classe funcional.
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Já os pacientes com MAD, verdadeira ou não verdadeira, apresentaram ventrículo esquerdo (VE) com volumes diastólicos finais maiores, bem como maiores graus de regurgitação valvar.
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A prevalência de MAD verdadeira foi de 7% (n = 42), enquanto que a de pseudo-MAD foi significativamente maior (37%, n = 221, P < 0.05). A pseudo-MAD, por sua vez, se correlacionou com a gravidade da insuficiência mitral (IMi), sendo mais prevalente entre aqueles com IMi importante (P < 0.05). Já a prevalência da MAD verdadeira foi similar entre pacientes com regurgitação valvar leve, moderada e importante (P > 0.05).
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A dimensão da MAD (comprimento), no contexto da disjunção não verdadeira, foi maior entre aqueles pacientes com IMi importante (10 ± 2 mm) comparando com a IMi moderada (8 ± 2 mm) e leve (6 ± 2 mm).
Já na MAD verdadeira, o comprimento da disjunção foi maior durante a sistóle do que durante a diástole (9 ± 2 mm x 7 ± 3 mm, P < 0.05), em parte devido a presença de justaposição do folheto valvar na parede do átrio esquerdo (AE) documentada em alguns pacientes (seriam aqueles com o fenótico de MAD e pseudo-MAD associadas).
De acordo com essa classificação (MAD x pseudo-MAD), 221 de 263 pacientes (84%) que classicamente teriam o diagnóstico de MAD foram reclassificados como portadores de pseudo-MAD.
Um subgrupo de 98 pacientes realizou estudo transesofágico com análise em 3D do anel valvar mitral. Destes, 47 tinham pseudo-MAD e 51 não tinham disjunção. Uma dimensão maior do anel valvar, bem como do comprimento dos folhetos valvares foram observados nos pacientes com pseudo-MAD (P < 0.001).
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Nesses pacientes com pseudo-MAD, um alongamento paradoxal na sístole final do pseudo-anel (diâmetro do anel valvar no plano do ponto de disjunção) foi observado.
Quando relacionado a outros fatores que podem se associar a síndrome arrítmica, o achado de pseudo-MAD se associou de forma significativa com o abaulamento (curling) da região basal da parede ínfero lateral do VE, bem como com a presença do sinal de Pickelhaube (OR 9.9: 6-16.6, P <0.05), quando comparados com pacientes sem MAD (P < 0.05) e MAD verdadeira (OR 1.9: 0.91-3.82, P = 0.8).
119 dos 126 pacientes com PVM que realizam ressonância magnética (RM) cardíaca, a pesquisa de fibrose miocárdica perianular, ínfero lateral, lateral e/ou de músculo papilar foi realizada. De forma geral, 30.2% (n = 36 pacientes) tinham realce tardio patológico nestes sítios.
Fibrose foi mais frequente nos pacientes com MAD verdadeira e pseudo-MAD comparando com os pacientes sem MAD (53% x 32% x 18%, respectivamente; P < 0.01). Fibrose perianular foi o padrão mais comum nos pacientes com MAD verdadeira (20%), enquanto que fibrose de músculo papilar foi observada em todos os 3 fenótipos (sem MAD, MAD verdadeira e pseudo-MAD). Entre os pacientes com pseudo-MAD, a fibrose ínfero lateral foi o padrão mais observado.
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Quando analisados os pacientes que fizeram RM, o ecocardiograma transtorácico mostrou uma acurácia de 0.89 (0.82-0.94) para a identificação de MAD, se mantendo similar entre os diferentes fenótipos.
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De acordo com os autores, portanto, a (1) presença de MAD verdadeira é considerada rara, (2) sendo a pseudo-MAD mais frequente e com aumento da prevalência de acordo com grau de gravidade da insuficiência mitral e (3) este padrão se associa à aspectos relacionados à síndrome arrítmica do PVM. Ainda, (4) o ecocardiograma transtorácico é um método com boa acurácia e considerado de primeira linha para o diagnóstico de disjunção do anel mitral.
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Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN) e em Cardiologia pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.