Semana passado comentamos sobre uma condição rara (graças a Deus), mas possível e que demanda muito cuidado técnico na execução do exame ecocardiográfico: a coexistência de estenose aórtica (EAo) com cardiomiopatia hipertrófica (CMPH) obstrutiva.
Agora, vamos trazer alguns exemplos para ilustrar bem o quão desafiador é este cenário.
CASO 01:
Homem, 89 anos de idade, com diagnóstico prévio de EAo e CMPH obstrutiva, vem para nova avaliação após passar a apresentar dispneia aos esforços.
Ao ecocardiograma, observou-se hipertrofia assimétrica, com predomínio septal (17 mm), do ventrículo esquerdo, presença de movimento sistólico anterior da valva mitral (SAM) associado a regurgitação mitral moderada a importante, com jato apresentando direção posterior, além de uma valva aórtica calcificada.
A graduação da insuficiência mitral (IMi) foi realizada de forma qualitativa em razão da contaminação pelo fluxo de alta velocidade na via de saída do ventrículo esquerdo (VSVE) em relação ao PISA, o que não possibilitou a realização da estimativa da área do orifício regurgitante (EROa).
A análise do Doppler mostrou duas curvas distintas de fluxo ao Doppler contínuo: uma curva simétrica, com pico mesossistólico, com gradiente máximo de 33 mmHg e médio de 12 mmHg (figura A); e uma segunda curva de fluxo assimétrica, com pico sistólico tardio, em formato de “adaga“, com gradiente de pico de 57 mmHg (figura B) em repouso e de 106 mmHg durante manobra de Valsalva.
A velocidade máxima do fluxo na VSVE foi de 2.1 m/s, com VTI de 45 cm.
Utilizando a equação de Bernoulli, o gradiente máximo do fluxo transvalvar aórtico foi de 15 mmHg, o que sugeriria apenas esclerose valvar. Contudo, como havia piora sintomática do paciente e pela dificuldade em se estabelecer, de forma confiável, os parâmetros de graduação da estenose valvar, o paciente foi submetido ao estudo transesofágico.
Neste, os folhetos coronariano esquerdo e coronariano direito apresentavam morfologia habitual, porém notava-se calcificação e espessamento do folheto não coronariano, com redução de mobilidade.
A área valvar aórtica, pela planimetria, foi de 1.6 cm², sugerindo apenas uma EAo leve. A avaliação da insuficiência mitral (IMi) mostrou EROa de 0.23 cm². Avaliação invasiva, através de cateterismo de câmaras direitas e angiografia, mostrou pressões de enchimento normais e ausência de doença coronária obstrutiva. O gradiente “peak-to-peak” entre o ventrículo esquerdo (VE) e aorta foi de 120 mmHg, porém não havia gradiente significativo através da valva aórtica no “pull-back”.
O diagnóstico foi, portanto, de CMPH obstrutiva associada a estenose aórtica leve e o paciente realizou ablação alcoólica septal com sucesso, evoluindo com melhora sintomática.
CASO 02:
Homem, 74 anos de idade, previamente diagnosticado com CMPH obstrutiva e EAo, apresentou episódio de dor torácica e dispneia.
Ecocardiograma mostrou hipertrofia septal assimétrica do VE, com o septo interventricular medindo 14 mm e a parede posterior, 11 mm. Além disso, observa-se presença de SAM com IMi aparentemente importante e jato regurgitante em direção posterior.
A função ventricular esquerda era preservada e a valva aórtica espessada. A análise com o Doppler contínuo mostrou presença de duas curvas distintas de fluxo: curva simétrica, com pico mesossistólico, com gradientes máximo de 92 mmHg e médio de 55 mmHg; e uma segunda curva, assimétrica e com pico sistólico tardio, formato em “adaga” e com gradiente de pixo de 74 mmHg em repouso e de 212 mmHg durante manobra de Valsalva.
A velocidade de pico na VSVE foi de 2.2 m/s e gradiente máximo transvalvar aórtico, pela equação de Bernoulli, de 70 mmHg. Estudo transesofágico subsequente mostrou uma valva aórtica com calcificação acentuada, restrição de mobilidade e com área valvar pela planimetria de 0.74 cm² e gradientes elevados.
O refluxo mitral foi considerado como moderado a importante, com jato regurgitante em direção posterior.
Cateterismo pré-operatório confirmou gradiente transvalvar aórtico de 83 mmHg e área valvar de 0.5 cm², além de ausência de doença coronária obstrutiva.
Com a presença de EAo importante, CMPH obstrutiva e IMi, o paciente foi submetido, com sucesso, à troca valvar aórtica e miomectomia septal, apresentando bloqueio atrioventricular total como complicação e necessidade de implante de marcapasso definitivo. A análise intraoperatória mostrou um padrão degenerativo da valva mitral e componentes primário e secundário relacionados à mecânica da IMi, não sendo realizada, portanto, a plastia valvar.
CASO 03:
Homem, 54 anos, previamente hígido, foi encaminhado para o ambulatório de valvopatias para avaliação de EAo após apresentar dor torácica intermitente.
O ecocardiograma mostrou hipertrofia septal assimétrica, SAM, ausência de IMi significativa e uma valva aórtica calcificada com restrição de mobilidade e abertura valvar reduzida.
O Doppler contínuo da VSVE mostrou dois padrões de curva de fluxo: curva simétrica, pico meossistólico e velocidade de pico de 3.9 m/s; outra curva, assimétrica, com pico sistólico tardio, em formato de “adaga” e com gradiente máximo de 27 mmHg em repouso e de 66 mmHg durante manobra de Valsalva.
O diagnóstico de CMPH latente com obstrução dinâmica associada a EAo moderada (área valvar 1.4 cm² – velocidade de pico da VSVE 1.1 m/s e VTI 36 cm) foi realizado.
Um ano após o diagnóstico, o paciente apresentou episódio de síncope na vigência de fibrilação atrial de alta resposta ventricular alternando com períodos de pausas prolongadas. Novo ecocardiograma não mostrou diferenças significativas nos gradientes ou na função ventricular esquerda.
Foi optado por implante de cardiodesfibrilador em razão do episódio de síncope e pelo histórico familiar de morte súbita.
Um ano depois, o paciente passou a apresentar dispneia aos esforços. Ecocardiograma mostrou gradientes estáveis, porém desta vez foi optado por realizar estudo transesofágico. A área valvar aórtica foi estimada em 1.1 cm² pela planimetria.
Cateterismo cardíaco não documentou doença coronária e o gradiente “peak-to-peak” entre o ventrículo esquerdo e a aorta foi de 30 mmHg.
Ao interrogar o CDI, vários episódios de fibrilação atrial de alta resposta ventricular foram documentos, o que poderia ter contribuído para o surgimento dos sintomas relatados.
Foi realizado aumento da dose do beta-bloqueador e o paciente apresentou atenuação dos sintomas durante o período de um ano. Após este intervalo, ele passou a apresentar piora da dispneia e novo ecocardiograma mostrou gradiente máximo aórtico de 84 mmHg e médio de 51 mmHg (figura B), além de área valvar de 0,7 cm² sem obstrução significativa da VSVE.
O paciente foi, então, submetido a troca valvar aórtica, miomectomia septal e procedimento de Maze, com melhora dos sintomas.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN) e em Cardiologia pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.