Análise da Velocidade de Fluxo Coronária em Repouso: qual o valor prognóstico?

Recentemente foi postado aqui uma publicação sobre a análise da reserva de fluxo coronariana durante a ecocardiografia com estresse. É verdade, porém, que nem todo ecocardiografista realiza teste sob estresse, seja físico ou farmacológico.

Sendo assim, a análise da velocidade de fluxo coronariana em repouso tem alguma implicação prognóstica ? Vamos, então, trazer aqui os resultados de um estudo que avaliou o impacto prognóstico, no contexto de doença arterial coronária (DAC), da velocidade do fluxo da artéria descendente anterior (DA) aumentada em repouso.

J Am Heart Assoc. 2024;13:e031270. DOI: 10.1161/JAHA.123.031270

Baseado no entendimento de que uma velocidade aumentada do fluxo coronariano em repouso habitualmente se correlaciona com baixa reserva coronária após teste com vasodilatadores, seria este achado em repouso associado a desfechos negativos ?!

A hipótese seria de que a análise combinada da velocidade de fluxo em repouso e da reserva de fluxo após estresse poderia detectar diferentes perfis de pacientes com aumento do risco cardiovascular, sendo esse risco mais elevado naqueles com velocidade de fluxo em repouso elevada associada a baixa reserva de fluxo no esforço.

Inicialmente, o estudo contou com uma população de 8.402 pacientes, a partir de 07 serviços de cardiologia em 03 diferentes países, entre o período de janeiro de 2003 e dezembro de 2021.

Os critérios de exclusão foram (1) fração de ejeção do ventrículo esquerdo (VE) ≤ 50%, (2) doença valvar significativa, (3) doença cardíaca congênita ou (4) doenças não cardíacas com prognósticos reservados (câncer, por exemplo).

Todos os pacientes foram submetidos a estudo ecocardiográfico com estresse farmacológico (dipiridamol) e, nesta avaliação, os parâmetros velocidade de fluxo da DA em repouso, bem como a reserva de fluxo coronário após o estresse foram realizados.

Dos 8.402 pacientes incialmente considerados para o estudo, 97 (1.2%) foram excluídos por janela acústica limitada para a análise das bordas endocárdicas, 401 (4.8%) por impossibilidade para análise do fluxo da DA, 135 (1.7%) por interrupção precoce da fase de esforço e 193 (2.5%) por perda de seguimento.

J Am Heart Assoc. 2024;13:e031270. DOI: 10.1161/JAHA.123.031270

Portanto, dos 7.576 participantes, 57% eram homens e a idade média foi de 66 ± 11 anos de idade. A indicação do estudo com estresse foi suspeita de DAC em 66% dos participantes e estratificação de risco em DAC já estabelecida em 34%. O desfecho final foi morte por todas as causas.

J Am Heart Assoc. 2024;13:e031270. DOI: 10.1161/JAHA.123.031270

A velocidade de fluxo da DA em repouso foi dividida em quintis (05 partes divididas) e as variáveis incluíram idade, sexo, diabetes, hipertensão arterial (HAS), tabagismo ativo, passado de infarto agudo do miocárdio (IAM), fração de ejeção (FE) em repouso, uso de betabloqueador, frequência cardíaca em repouso e pressão arterial sistólica e diastólica em repouso.

Quanto aos resultados, a FE foi de 60 ± 5% em toda a população participante e o valor médio da velocidade máxima do fluxo da DA em repouso foi de 31 ± 12 cm/s. Já em relação à reserva de fluxo coronária, o valor médio foi de 2.32 ± 0.60.

Na análise univariável, aqueles no maior quintil eram mais velhos, mais frequentemente portadores de diabetes mellitus (DM) e apresentavam menor FE, maior frequência cardíaca (FC) e maiores valores de pressão arterial comparados com os outros grupos. Ainda, esses pacientes apresentaram maior prevalência de isquemia induzida pelo estresse farmacológico e reserva de fluxo coronário ≤ 2.

Por outro lado, a análise de regressão multivariada mostrou que DM, FC aumentada, aumento da pressão arterial sistólica (PAS), histórico de IAM e reserva de fluxo coronário ≤ 2 se associaram com maior chance de uma velocidade de fluxo em repouso elevada.

J Am Heart Assoc. 2024;13:e031270. DOI: 10.1161/JAHA.123.031270

Reserva de fluxo coronária ≤ 2.0 foi observada em 2.164 (29%) pacientes. Esse parâmetro se relacionou de forma fraca com a velocidade do fluxo em repouso (r = 0.27, p < 0.001).

Um total de 1.001 pacientes demonstraram alteração da contratilidade segmentar no território da DA em repouso ou induzida pelo estresse. Desses, 672 (67%) também apresentaram reserva de fluxo reduzida.

Dos outros 606 pacientes sem alteração contrátil no território da DA, 133 (22%) tinham reserva de fluxo reduzida.

J Am Heart Assoc. 2024;13:e031270. DOI: 10.1161/JAHA.123.031270
J Am Heart Assoc. 2024;13:e031270. DOI: 10.1161/JAHA.123.031270

Durante um seguimento médio de 5.0 ± 4.3 anos, ocorreram 1.121 (15%) mortes. Ainda, 1.170 (15%) pacientes foram submetidos a revascularização miocárdica (229 cirurgias x 941 angioplastias).

A velocidade de fluxo foi considerada elevada, em repouso, quando ≥ 32 cm/s, valor este que foi considerado o ponto de corte ótimo para predizer mortalidade (AUC = 0.56, 95% IC: 0.55-0.57), com sensibilidade 42% e especificidade 68%.

A reserva de fluxo normal (n = 5.412, 71%) se associou a uma velocidade de fluxo elevada em repouso em 1.541 (20%) pacientes e a uma velocidade de fluxo normal em repouso em 3.871 (51%) pacientes.

Já uma reserva de fluxo reduzida (n = 2.164, 29%) se associou a uma velocidade de fluxo em repouso normal em 1.169 (15%) pacientes e a uma velocidade de fluxo elevada em 995 (13%) pacientes.

J Am Heart Assoc. 2024;13:e031270. DOI: 10.1161/JAHA.123.031270

A tabela 03 mostra a distribuição de pacientes em cada quintil de acordo com a velocidade de fluxo em repouso e sua respectiva reserva de fluxo. No quintil mais baixo, apenas 3% dos pacientes apresentaram reserva de fluxo ≤ 2.0, enquanto que o quintil maior, esse valor aumentou para 10%. O teste de Pearson x² confirmou uma associação significativa entre os quintis e as reservas de fluxo (p<0.001).

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Indicadores de mortalidade por todas as causas foram idade (HR 1.09, 95% IC: 1.08-1.10; p < 0.0001), reserva de fluxo ≤ 2.0 (HR 1.78, IC 95%: 1.57-2.02; p < 0.001), cirurgia de revascularização miocárdica prévia (HR 1.58, IC 95%: 1.33-1.93; p < 0.001), DM (HR 1.37, IC 95%:1,21-1.55); p < 0.0001), velocidade de fluxo em repouso ≥ 32 cm/s (HR 1.24, IC 95%: 1.10-1.40; p < 0.0001) e FEVE (HR 0.98, IC 95%: 0.97-1.0; p < 0.03). Uma velocidade de fluxo em repouso maior que a observada no terceiro quintil demonstrou um HR de 1.16 (IC 95%: 1.03-1.31).

A taxa de mortalidade aumentou progressivamente do primeiro ao quinto quintis. Da mesma forma, a taxa anual de mortalidade aumentou de forma progressiva com o aumento dos quintis da velocidade de fluxo em repouso, partindo de 1.9% no primeiro quintil para 3.7% no quinto,

J Am Heart Assoc. 2024;13:e031270. DOI: 10.1161/JAHA.123.031270
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Quando ambas velocidade de fluxo e reserva coronária foram consideradas, a taxa de mortalidade foi maior naqueles pacientes com velocidade de fluxo elevada em repouso associada a uma reserva de fluxo reduzida após o estresse, e menor naqueles indivíduos com velocidade de fluxo baixa em repouso e boa reserva de fluxo após o estresse farmacológico.

J Am Heart Assoc. 2024;13:e031270. DOI: 10.1161/JAHA.123.031270

Nos 1.492 pacientes com DAC não grave (estenose <50%) na DA, seja pela angiotomografia ou angiografia, 892 indivíduos tinham outras artérias normais ou com mínimo acometimento, 357 tinham lesão em algum outro vaso (110 com lesão na circunflexa – Cx, 176 na coronária direita – CD e acometimento da Cx+CD em 71) e 243 com doença da DA corrigida previamente (cirurgia = 59, angioplastia = 184).

Nestes pacientes (sem doença grave na DA) houve 148 (10%) mortes. Na análise multivariada, a velocidade de fluxo em repouso ≥ 32 cm/s (HR 1.57, 95% IC: 1.12-2.16; p = 0.008) mostrou valor prognóstico independente, enquanto que reserva de fluxo ≤ 2.0 e alteração da contratilidade segmentar induzida pelo estresse não.

Já naqueles pacientes sem lesão na DA, mas com lesão em algum outro vaso, 58 (16%) óbitos foram documentados. Nesse grupo, alteração da contratilidade segmentar induzida pelo estresse, velocidade de fluxo ≥ 32 cm/s em repouso e reserva de fluxo ≤ 2.0 falharam como marcadores prognóstico independentes.

O estudo demonstra, portanto, que (1) velocidade de fluxo em repouso e reserva coronária após o estresse farmacológico mostraram valor prognóstico independente em pacientes com DAC crônica com FE preservada; (2) um pior prognóstico ocorre na associação de velocidade de fluxo elevada em repouso com reserva coronária reduzida no esfoço e (3) quando considerado os parâmetros de avaliação de fluxo coronariano, a presença de alteração contrátil segmentar deixa de ser considerada a única determinante para guiar estratégias terapêuticas.

Desta forma, já que a análise da velocidade de fluxo em repouso fornece informação importante sobre a fisiologia da circulação coronária e possui valor prognóstico, parece razoável, segundo os autores, que esta avaliação seja adicionada como rotina no contexto de DAC crônica na ecocardiografia de repouso e que não seja apenas utilizada como parte necessária apenas para a avaliação da reserva de fluxo no estudo com estresse.

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