O remodelamento cardíaco induzido pelo esforço físico, em alguns casos, pode compartilhar achados ecocardiográficos que também estão presentes em condições patológicas. Diferenciar “coração do atleta” de condições que aumentem o risco de morte súbita ou que estão associadas a eventos adversos nos atletas de alto rendimento é o grande desafio para aqueles que atuam nesse área.
A dita “zona cinzenta” é um contexto clínico muito presente na ecocardiografia esportiva e requer uma análise técnica com recursos avançados em repouso e durante o esforço físico isométrico (usualmente, handgrip).
Tranquilo! Isso tudo já foi abordado em tópicos diferentes aqui no blog. Então vou trazer dois exemplos práticos de como esse cenário se reproduz no dia-a-dia…
CASO 01: paciente homem, branco, 29 anos, sem comorbidades conhecidas, vem realizar ecocardiograma transtorácico por exigência de concurso público para qual concorre.
Ex-obeso, praticante de atividade física regular, com predomínio de componente aeróbico, de forma constante, há aproximadamente 3 anos. Realiza corridas diárias, com média de 12-15 km/dia, além de musculação com frequência de 5x/semana.
Assintomático, sem histórico familiar de cardiopatias.
Ecocardiograma transtorácico com as seguintes medidas:
Diâmetro diastólico VE – 60 mm | Diâmetro basal VD 43 mm; TAPSE 2,8 cm, FAC normal, Onda S 1,7 cm/s |
Diâmetro sistólico VE – 41 | Volume AD 36,7 ml/m² |
Fração Ejeção VE – 63% | Índice de Massa 106 g/m² |
E/A 1,9; E/e´ média 4,55; e´ lateral 25 cm/s; e´ septal 15 cm/s | Espessura relativa 0,32 |
Diâmetro AE 40 mm; volume AE 42,6 ml/m² |
Estamos diante de um exame com diâmetros cavitários aumentados e com função biventricular preservada. A pergunta que precisa ser feita é: o paciente merece esse coração???
Temos modalidade de treino que pode induzir à adaptação excêntrica, um carga de treino considerável, com treinamento constante há alguns anos. Portanto, o paciente pode sim merecer este tipo de coração!
Porém, temos que sair do espectro da “possibilidade” e trazer dados mais consistentes que possam dar segurança em descartar o padrão patológico (veja! o paciente pode perder a condição de concorrer a um concurso público, visto que o edital lista como critérios de exclusão “doenças do miocárdio”).
Vamos, então, para a análise com recursos avançados.
Strain global longitudinal (SGL) do ventrículo esquerdo (VE) em repouso de 22%, com padrão homogêneo e PSD de 35 ms.
A análise do trabalho miocárdico, também em repouso, demonstrou eficiência global de 98%, com trabalho construtivo de 2135 mmHg% e trabalho desconstrutivo de 35 mmHg%.
Além disso, o strain de parede livre do ventrículo direito (VD) foi normal, com strain de átrio esquerdo com fase de reservatório preservada e fase de bomba reduzida.
Durante o esforço isométrico, foi observado uma redução do SGL (20,9%), porém ainda dentro dos parâmetros de normalidade, com ativação predominante dos segmentos apicais.
Trabalho miocárdico com eficiência global mantida durante handgrip (97%), ativação predominante dos segmentos apicais, com incremento do do GCW (2770 mmHg%) e também do GWW (65 mmHg%).
O strain do VD apresentou leve redução, mas persistindo dentro dos valores de normalidade, e houve aumento da fase de bomba do strain do átrio esquerdo.
Com todas essas informações (e outras mais, como strain rate da onda E e análise da torção – cenas para os próximos capítulos rsrsrs) podemos afirmar, com segurança, tratar-se de um coração adaptado, mantendo boa eficiência em repouso e com reserva funcional durante o esforço.
CASO 02: paciente homem, branco, 39 anos, assintomático, vem para realizar exames de rotina. Ecocardiograma transtorácico mostrou aumento da espessura das paredes do VE, demais cavidades com diâmetros preservados e padrão de disfunção diastólica (alteração de relaxamento).
Praticante de atividade física regular, modalidade de treino isométrico (musculação) sem componente aeróbico, com frequência de 3-5 vezes por semana, porém não considerado como de alta intensidade.
A mesma pergunta deve ser feita: o paciente merece esse coração?
Até temos uma modalidade de treino compatível com adaptação concêntrica, porém, neste caso, com frequência não constante, cargas de treinos não elegíveis para alta intensidade e algo que chama atenção já em repouso: diástole alterada.
Vamos para a análise avançada!
SGL do VE em repouso de 20%, PSD 46 ms e pressão arterial elevada (140×110 mmHg).
O trabalho miocárdico mostra um padrão de hiperativação dos segmentos apicais, com eficiência global de 96% e com trabalho desconstrutivo elevado (95 mmHg%).
Durante o esforço, foi observado manutenção do valor do SGL (20%), com ativação predominante dos segmentos apicais e aumento do PSD para 55 ms.
Percebe-se também uma redução da eficiência global (94%), com aumento da área de hiperativação dos segmentos apicais e aumento significativo do GWW (146 mmHg%).
A queda da eficiência global do VE durante o esforço demonstra ausência de reserva funcional, apontando para um padrão patológico. Ainda, uma ativação exacerbada dos segmentos apicais durante o repouso associado a um GWW já elevado indica que mecanismos de adaptação estão atuando (lembrem-se: a ponta diz muita coisa!) para tentar manter a eficiência em repouso.
Temos, portanto, um padrão bem característico de hipertensão arterial sistêmica, indicado que a hipertrofia ventricular encontrada não é compatível com um coração adaptado, mas sim com um processo patológico em atividade.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.