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Valva Aórtica Fenestrada: uma causa incomum de regurgitação valvar

A insuficiência aórtica (IAo) pode resultar de diferentes patologias, seja com acometimento das cúspides valvares ou da raiz de aorta.  

Múltiplas fenestrações no folheto coronariano direito

Uma causa incomum é a presença de fenestrações na valva aórtica. A literatura, neste caso, é escassa no sentido de descrever esta alteração como possível mecanismo de regurgitação valvar, o que faz com que o seu (re)conhecimento seja um grande desafio para nós ecocardiografistas. Inclusive, o guideline da American Society of Echocardigraphy (2017) sobre regurgitação de valva nativa não inclui as fenestrações como as causas listadas de IAo.  

Descrita como um achado comum, as fenestrações das cúspides da valva aórtica frequentemente não se associam à regurgitação valvar. Isso se dá em razão da sua localização habitual, que costuma ser próximo a região de coaptação (93.8%), fazendo com que haja sobeposição de tecido valvar, durante a diástole, impedindo o refluxo. Então, mesmo na presença de fenestrações, o mecanismo causador da IAo costuma ser outra alteração que eventualmente coexista, como prolapso ou dilatação da raiz de aorta. 

Yang et al analisou 382 pacientes que foram submetidos a cirurgia cardíaca por IAo moderada e severa. Destes, apenas 12 casos (3.1%) apresentavam a fenestrações relacionadas a regurgitação valvar e somente 1 paciente (0.26%) tinha nas fenestrações o mecanismo isolado responsável pela IAo. Dos 12 casos citados, 8 (86,7%) apresentavam ruptura das fenestrações, 9 (75%) tinham prolapso valvar e, em todos os casos, o jato regurgitante tinha apresentação excêntrica.

Em estudo com 400 peças anatômicas de coração humano, a presença de valva aórtica com fenestrações foi observada em 43% dos casos, sendo em apenas um folheto em 24%, em dois em 16% e nos três folhetos valvares em 3%. As fenestrações foram mais comuns no folheto coronariano esquerdo (25.5%), seguido pelo folheto coronariano direito (23%) e em apenas 16,3% foram observadas no folheto não coronariano.

https://blog.escolaecope.com.br/wp-content/uploads/2023/05/ca24002-sup-0001-video1-1.mp4
Dudkiewicz, D., Zhingre Sanchez, J. D., Hołda, J., Bolechała, F., Strona, M., Kopacz, P., Iaizzo, P. A., Koziej, M., Hołda, M. K., & Konieczyńska, M. (2023). Aortic valve fenestrations: Macroscopic assessment and functional anatomy study. Clinical Anatomy, 36( 4), 612– 617. https://doi.org/10.1002/ca.24002

As vezes, contudo, pode haver uma ruptura (rasgo) do tecido valvar entre uma fenestração e a parede da aorta ou entre duas fenestrações, levando a uma “expansão” dessa solução de continuidade, resultando em disfunção valvar por regurgitação. Essa situação é conhecida como “ruptura da fenestração”. Em alguns casos, pode levar a IAo aguda com repercussão hemodinâmica.  

Com frequência se associa a aumento da raiz da aorta (dificultando a interpretação de qual mecanismo é o responsável para disfunção valvar – fenestração x dilatação da raiz). Por ser uma situação pouco relatada, é difícil predizer a evolução desta associação (fenestração + dilatação de raiz) para IAo progressiva. Portanto, uma abordagem individual deve ser considerada no seguimento desses pacientes. 

Vejam como a avaliação através do ecocardiograma não é tão simples, fazendo com que o diagnóstico, muitas vezes, seja realizado apenas no transoperatório

https://blog.escolaecope.com.br/wp-content/uploads/2023/05/Exemplo-1.mp4
Adaptado de: https://www.ctsnet.org/article/congenital-aortic-valve-fenestration-repair-and-root-remodeling
Eixo Curto – impressão de jato regurgitante central (mecanismo duplo: dilatação raiz de Ao + fenestração); Eixo Longo – jato com origem (seta) discretamente fora da região de coaptação.
https://blog.escolaecope.com.br/wp-content/uploads/2023/05/Exemplo-1-intraop-1.mp4
Adaptado de: https://www.ctsnet.org/article/congenital-aortic-valve-fenestration-repair-and-root-remodeling

Deve-se sempre suspeitar de fenestrações na presença de tecido valvar móvel (à semelhança do que ocorre na presença de flail da valva mitral) acompanhado de fluxo através do defeito ao estudo com Doppler. A história clínica é (como sempre !) parte essencial do diagnóstico, uma vez que a ausência de histórico de endocardite infecciosa ajudará na diferenciação entre fenestração e ruptura de folheto propriamente dita. 

Um jato excêntrico, com convergência de fluxo acima do plano valvar, na ausência de dilatação de aorta, fora de contexto clínico de endocardite e sem prolapso valvar evidente deve levar à suspeição de presença de fenestrações (ou seja, é um diagnóstico de exclusão !!!!). Em alguns casos, a confirmação só é possível no transoperatório ou na análise histopatológica pós troca valvar.  

Quando identificada durante procedimento cirúrgico, o reparo (plastia) é raramente indicado dada a complexidade técnica e evolução desfavorável. Em raras ocasiões, na ausência de ruptura e na presença de fenestração única, pode ser considerado o reparo valvar com patch pericárdico (a recorrência costuma ser baixa).

Aqui o exemplo de uma mulher de 52 anos de idade, usuária de heroína e cocaína, com história de dispneia progressiva, iniciada há 03 semanas, associada a dor abdominal. Ecocardiograma revelou miocardiopatia dilatada (diâmetro diastólico final do VE 73 mm), com disfunção ventricular esquerda moderada (FE 39%), além de IAo importante. A ecocardiografia transesofágica demonstrou IAo severa, com jato excêntrico por provável perfuração do folheto coronariano direito.

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Diante do contexto clínico, a hipótese de endocardite infecciosa foi pensada como causa da perfuração, porém a análise histopatológica da valva aórtica, após cirurgia cardíaca, revelou fenestração do folheto coronariano direito, sem evidências de vegetação.

Vamos para outro exemplo: https://reader.elsevier.com/reader/sd/pii/S246864412300018X?token=930895D3EA1C247605F15B9C3B5728DBC378E095797B7D9B99FCFF9108254A7E5CFA3993B650CF062B98BD11B58D00D5&originRegion=us-east-1&originCreation=20230507141710

Homem, 60 anos, assintomático, realizou ecocardiograma de rotina, sendo observado IAo moderada a importante. Tinha histórico de trombose venosa profunda por mutação do gene da protrombína, motivo pelo qual fazia uso habitual de rivaroxabana.  

Ao exame, chamava atenção a presença dos sinais de Musset e Lincoln e pressão arterial divergente (160 x 70 mmHg), além de sopro diastólico em foco aórtico.  

Ecocardiograma:  

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Afastadas as possibilidade de VAo bicúspide, doenças do tecido conjuntivo ou reumatológicas e de endocardite infecciosa (lembrem: é um diagnóstico de exclusão!). Optado por conduzir o caso de forma conservadora, com seguimento ecocardiográfico próximo. 

Novo ecocardiograma realizado após 06 meses observou aumento do diâmetro diastólico do VE para 64 mm, preenchendo critério para intervenção cirúrgica. Raiz de aorta foi medida em 41 mm (seio de valsalva) e 40 mm (junção sinotubular), com aorta ascendente apresentando 40 mm de diâmetro (42 mm na tomografia computadorizada).  

A- ECO TT: janela apical 3C demostrando convergência de fluxo, com jato excêntrico. B, C e D – ECO TE: demonstrando localização da regurgitação, excêntricidade do jato, ERO 0.29 cm² e volume regurgitante de 77 ml.

Ecocardiograma transesofágico no pré operatório demonstrou regurgitação aórtica significativa, com jato excêntrico observado entres os folhetos não coronariano e coronariano esquerdo. No plano transgástrico, presença de convergência de fluxo acima da mesma região citada, o que aumentou a suspeita de fenestração ou perfuração. Na ausência de contexto clínico de endocardite, a possibilidade de fenestração foi aventada. 

https://blog.escolaecope.com.br/wp-content/uploads/2023/05/Video-Caso-01-FInal-2.mp4

A natureza excêntrica do jato regurgitante sugere que o mecanismo seja menos propenso a ser secundário ao aumento da raiz de aorta (nesta situação, seria esperado um jato central; além do que o aumento da raiz de aorta era desproporcional à disfunção valvar). 

Os achados intraoperatórios confirmaram a presença de múltiplas fenestrações, contudo sem aspecto sugestivo de ruptura, no folheto não coronariano. Reparo (plastia) valvar não foi considerada, dada a fragilidade do tecido valvar e pela presença de fenestrações múltiplas (deve ser considerado apenas quando na presença de fenestração única), sendo, portanto, realizado a troca valvar por bioprótese.  

A análise histopatológica revelou calcificação leve a moderada, com fibrose valvar e presença de excrecência de Lambl.  

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