Trabalho Miocárdico e Doença Arterial Coronária: o padrão faz a diferença

A avaliação de pacientes com suspeita de doença arterial coronária envolve, entre outros métodos, o emprego da ecocardiografia. Sabemos, contudo, que em muitos casos, mesmo com a doença já estabelecida, o exame ecocardiográfico pode estar dentro dos parâmetros de normalidade.

Com a progressão da doença, podemos observar (nem sempre!) alterações da contratilidade segmentar (cuja percepção, por vezes, requer experiência do examinador) e queda da função ventricular esquerda, com aumento das cavidades cardíacas já em fases mais avançadas/doença mais grave.

A análise pela técnica de Speckle Tracking, através do strain, traz um ganho substancial, uma vez que pode, mesmo na ausência de alteração segmentar, demonstrar diminuição da deformação em territórios coronarianos ao Bull´s eye, assim como redução do strain global longitudinal do ventrículo esquerdo (VE), ainda que a fração de ejeção do ventrículo esquerdo esteja preservada.

Até aqui, tudo tranquilo e sem nenhuma novidade! Como a gente sabe que, quanto mais precocemente for diagnosticada a doença, melhores são os benefícios que esses pacientes terão com as terapêuticas instituídas, seria, então,  a avaliação da eficiência cardíaca através na análise do trabalho miocárdico uma opção a mais no arsenal diagnóstico desta que é uma doença tão desafiadora?

Um estudo avaliou a capacidade do trabalho miocárdico em detectar DAC, bem como identificar o grau de obstrução, nos pacientes com fração de ejeção preservada e sem alteração da contratilidade segmentar do VE.

WANG et al., Ultrasound in Medicine & Biology, Volume 47, Number 1, 2021

Para tal, foram avaliados 180 pacientes com suspeita de DAC, entre 2019 e 2020, sem doença previamente conhecida (foram excluídos pacientes com passado de angioplastia percutânea ou submetidos à revascularização miocárdica), respeitando os seguintes critérios:

– Idade > 18 anos;

– Indicação de cateterismo cardíaco de acordo com as diretrizes atuais;

– Ecocardiograma realizado antes do cateterismo;

– Fração de ejeção do VE preservada (>55%) e ausência de alteração da contratilidade segmentar do VE;

– ECG em ritmo sinusal e sem alterações da repolarização ventricular.

WANG et al., Ultrasound in Medicine & Biology, Volume 47, Number 1, 2021

Pacientes < 18 anos, com QRS > 0,12s, disfunção valvar significativa, fibrilação atrial com frequência cardíaca > 100 bpm ou outras arritmias sustentadas, instabilidade clínica, alergia à iodo, transtornos mentais severos e baixa expectativa de vida, além de insuficiência cardíaca, foram excluídos.

Todos os pacientes foram submetidos a cineangiocoronariografia nas primeiras 12h da admissão e o ecocardiograma realizado antes do procedimento. 169 pacientes se enquadraram nos critérios do estudo, contudo 5 foram excluídos pela impossibilidade de análise dos recursos avançados (strain e trabalho miocárdico) por janela acústica desfavorável.

Os pacientes foram divididos em diferentes grupos, de acordo com o resultado da cineangiocoronariografia: (1) sem estenose (n = 40) / (2) estenose leve –  < ou igual 50% (n = 39) / (3) estenose moderada –  50 – 70% (n = 39) / (4) estenose importante – > 70% (n = 46).

O grupo com estenose importante apresentou os menores valores de strain global longitudinal (SGL) do ventrículo esquerdo, mesmo com fração de ejeção (FE) preservada e sem alteração da contratilidade segmentar. Não houve, contudo, diferença estatisticamente significativa nos valores de SGL entre os grupos sem estenose, estenose leve e estenose moderada.

WANG et al., Ultrasound in Medicine & Biology, Volume 47, Number 1, 2021

Em relação ao trabalho miocárdico, houve também diferença significativa entre os valores de todos os parâmetros globais em relação ao grupo com estenose importante quando comparado com os demais, porém não houve diferença nos valores do GWW entre os grupos com estenose importante e estenose moderada.

WANG et al., Ultrasound in Medicine & Biology, Volume 47, Number 1, 2021

Houve piora dos parâmetros de trabalho miocárdico à medida em que o grau de estenose aumentou (obviamente, quando falamos no GWW foi observado um aumento dos valores). Ou seja, quanto maior o grau de obstrução coronária, menores são os valores de GWI, GCW e GWE.

WANG et al., Ultrasound in Medicine & Biology, Volume 47, Number 1, 2021

O estudo demonstrou que um índice de eficiência (GWE) < 94.5% teve sensibilidade de 89,7% e especificidade de 85,8% para identificar estenose coronariana moderada. Já para estenose importante, a sensibilidade foi de 81,4% e especificidade de 76.1%.

WANG et al., Ultrasound in Medicine & Biology, Volume 47, Number 1, 2021

Portanto, para lesões > 50%, o trabalho miocárdico passa a diminuir à medida em que a gravidade da lesão aumenta, se mostrando como uma ferramenta AUXILIAR com potencial de identificar DAC.

Vamos lá! Antes de querer auxiliar na determinação da gravidade da DAC, o mais importante é ter boas sensibilidade e especificidade para DETECTAR a doença de forma precoce, ou seja, antes que outras alterações (como alteração segmentar e disfunção ventricular esquerda) apareçam.

Acredito que isso, por si só, já faz deste recurso um método muito valioso. Agora percebam um detalhe: o GWE, o parâmetro que se mostrou mais específico, só passou a ficar alterado nas lesões moderadas e importantes – verde -(nesta fase, é provável que outros achados, sejam clínicos ou de métodos complementares, já estejam evidentes). Mas se olharmos para os valores de trabalho desconstrutivo (GWW), observa-se uma diferenciação já em relação às lesões leves comparadas com as lesões moderadas – vermelho.

WANG et al., Ultrasound in Medicine & Biology, Volume 47, Number 1, 2021

Agora vamos fazer um outro exercício. Se, ao invés de ficarmos atentos apenas aos valores, passarmos a observar o padrão de alteração?

Como assim?! Ao avaliarmos os resultados, tanto do strain (no caso, Bull´s eye) como do trabalho miocárdico, devemos observar o padrão de ativação de cada segmento. Basta termos o entendimento de que a ativação da contração ventricular ocorre da base em direção à ponta (vamos fazer uma postagem lembrando desse importante conceito fisiológico em breve!).

Desta forma, o padrão habitual esperado é que haja valores crescentes partindo dos segmentos basais e indo em direção aos segmentos apicais.

SGL (A) e trabalho miocárdico (B) demonstrando padrão progressivo de ativação no sentido base –> ponta

Se observarmos uma redução do trabalho de um segmento médio e/ou apical comparado com o segmento basal da mesma parede, devemos atentar para a possibilidade de DAC.

Paciente apresentando diminuição do trabalho miocárdico dos segmentos médios das paredes anterior e posterior – acervo de Dr. João Giffoni.

A avaliação durante o esforço isométrico pode corroborar essa hipótese se o mesmo padrão for mantido e se houver compensação por parte de outros segmentos.

Mesmo paciente, durante esforço isométrico, mantendo mesmo padrão de redução do trabalho miocárdico no segmento médio da parede anterior e com eficiência (GWE) mantida às custas de uma hiperativação do segmento basal. Notar que, agora, a parede posterior passou a apresentar padrão de ativação habitual. Angiotomografia de coronárias confirmou lesão importante da artéria descendente anterior – acervo de Dr. João Giffoni.

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