Trabalho de Conclusão de Curso: O Papel da Ecocardiografia na Cardite Reumática

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO: O Papel da Ecocardiografia na Cardite Reumática

MODALIDADE: Relato de Caso

AUTORA: Natasha Brasil do Amaral

ORIENTADOR: Dr. Jose María del Castillo

Apesar de se tratar de um relato de caso, iremos focar na discussão deste TCC com ênfase nos critérios clínicos e ecocardiográficos da cardite reumática.

A doença cardíaca reumática constitui um grande desafio para a saúde pública mundial, bem como representa a doença cardíaca mais prevalente em crianças. Entre os principais determinantes da febre reumática e das doenças reumáticas do coração estão: pobreza, desnutrição, superlotação, condições de moradia precária e falta de recursos de saúde. Embora estratégias de baixo custo para a prevenção e controle dessas doenças estejam disponíveis, permanecem subutilizadas na maioria dos países em desenvolvimento.

Trata-se de uma patologia que envolve certa predisposição genética e que afeta ambos os sexos por igual – sem predomínio de raça – porém com pior prognóstico para mulheres. Há um predomínio na idade pediátrica, entre 5-15 anos, média de idade de 10 anos, sendo que apenas 20% dos casos ocorrem em adultos.

O mecanismo patogenético responsável pela doença parece estar ligado ao processo inflamatório desencadeado por uma reação cruzada contra produtos de estreptococos alojados às estruturas do indivíduo afetado (mimetismo molecular)1. Estudos mostram evidências de que a cardiopatia reumática pode resultar de episódios recorrentes de FR aguda, sendo esta também a sua manifestação mais letal, capaz de gerar sequelas valvares importantes6. No que tange à fisiopatologia do acometimento cardíaco, sabe-se que as lesões iniciais surgem nas valvas cardíacas ao longo da linha de fechamento, podendo, posteriormente, as valvas tornarem-se espessas e deformadas, com encurtamento das cordoalhas, ocasionando insuficiência ou estenose valvar. 

Clinicamente, a cardite reumática é descrita como uma pancardite envolvendo o pericárdio, o miocárdio e as bordas livres das cúspides valvares, algo que geralmente tem aparecimento precoce (nas três primeiras semanas) e pode se estender até dois meses. Embora possa se manifestar na forma aguda, com insuficiência valvar mitral e aórtica, em cerca de 70% dos casos apenas a valva mitral é afetada, enquanto a estenose mitral se apresenta como uma complicação mais tardia. Na literatura, há evidências de que lesões mitrais são mais comumente encontradas em mulheres e as lesões aórticas normalmente acometem mais os homens, corroborando para uma evolução clínica desfavorável. É importante ressaltar que a recorrência da doença aumenta o risco de desfechos valvares negativos7.

Na cardite reumática, taquicardia persistente, ritmo de galope, aparecimento de sopros ocasionados pela regurgitação resultante da disfunção aguda são bem característicos, bem como sinais de insuficiência cardíaca observados ao exame físico 8.

De acordo com a gravidade, pode-se classificar a cardite em subclínica, leve, moderada ou severa. Nas duas últimas formas há características como taquicardia com sopros mais intensos, aumento da área cardíaca na radiografia de tórax com sinais de congestão pulmonar, alterações eletrocardiográficas e arritmias, bem como regurgitação valvar e aumento das câmaras esquerdas de grau moderado a importante.

No que tange ao diagnóstico febre reumática aguda, sabe-se que é predominantemente clínico, visto que não há exame laboratorial patognomônico e as manifestações clínicas são polimórficas. Muitas vezes, sua detecção precoce se baseia na ausculta de sopros, seguida da confirmação ecocardiográfica apenas em casos suspeitos10.

Os critérios de Jones, estabelecidos em 1944 pelo Dr. T. Duckett Jones, são utilizados apenas como um guia para o diagnóstico. Em 2015, a American Heart Association (AHA) revisou tais critérios (Tabela 1) com o objetivo de incluir o ecodopplercardiograma como ferramenta diagnóstica, introduzir a classificação de recomendações e níveis de evidência, bem como a mudança de padrão, de acordo com a população exposta a certas manifestações, maiores ou menores.

Tabela 1

De acordo com a última revisão dos critérios de Jones, todos os casos confirmados ou suspeitos de febre reumática aguda (FRA) devem realizar ecocardiograma (Classe I, nível de evidência B). Trata-se de um exame mais sensível em que se procede à ausculta para detectar regurgitação valvar, mesmo de grau discreto 8,19 (Tabela 2). 

Estudos evidenciam que já existem outras doenças que podem preencher os  critérios de Jones assim como os casos atípicos de DR, que podem não os satisfazer, sendo necessário bom senso para utilizá-los adequadamente. A cultura e o teste rápido têm boa sensibilidade, se realizados na fase aguda da faringoamigdalite, nem sempre possível nos pacientes com clínica sugestiva. A elevação dos títulos de ASLO se inicia por volta do sétimo dia, atingindo seu valor máximo entre a quarta e sexta semana, porém cerca de 20% dos pacientes não cursam com elevação desse marcador, de modo que a sua elevação isolada não infere febre reumática, mas sim que o indivíduo teve contato com o estreptococo12.

O tratamento da cardite envolve o controle do processo inflamatório com o uso de corticoide nos casos moderados a grave (I-B), bem como controle da IC através de medidas higienodietéticas e farmacológicas (uso de diuréticos, IECA e digital). Recomenda-se o uso de prednisona (1 a 2 mg/kg/dia), por via oral, sendo a dose máxima de 80 mg/dia. Dose plena por 2 a 3 semanas, com controle clínico e laboratorial (PCR e VHS), devendo-se realizar o desmame de 20% a 25% da dose a cada semana, com tempo total de tratamento de 12 semanas.

Na febre reumática, em algumas situações de cardite refratária ao tratamento clínico padrão, com lesão valvar grave, pode ser necessária a realização de um tratamento cirúrgico na fase aguda. Isso ocorre principalmente nas lesões de valva mitral com ruptura de cordas tendíneas ou perfuração das cúspides valvares. Embora o risco da cirurgia cardíaca na vigência de processo inflamatório agudo seja mais elevado, essa pode ser a única medida para o controle do processo (Classe I- Nível de evidência C).

Apesar de todo o progresso científico alcançado mundialmente, a prevenção e controle da doença reumática ainda se mostra um desafio para autoridades públicas, em especial nos países subdenvolvidos e em desenvolvimento, onde a marca da  desigualdade social e as precárias condições sanitárias se traduzem num cenário desolador.  Estima-se que aproximadamente 233.000 pessoas morram todos os anos em consequência desta doença tão brutal que acomete indivíduos jovens, em plena fase produtiva, e gera danos psico-orgânicos sem tamanho3,4. Infelizmente, as opções de terapia clínica que reverteriam o processo inflamatório sobre as valvas cardíacas são ineficientes e resultam muitas vezes em cirurgias repetitivas, já que as próteses tem vida útil, algo que torna ainda maior seu impacto socioeconômico. Urge a importância da existência de programas multidisciplinares objetivando a promoção de uma perfeita adesão à profilaxia,  de um controle das lesões residuais e de cuidados relacionados ao bem-estar físico e mental desses pacientes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. Pereira BAF, Belo AR et al. Febre reumática: atualização dos critérios de Jones à luz da revisão da American Heart Association – 2015. Revista Brasileira de Reumatologia. 2017; 57 (4): 364-368
  2. Gewitz MH, Baltimore RS, Tani LY. Revision of the Jones criteria for the diagnosis of acute rheumatic fever in the era of doppler echocardiography. A scientific statement from theAmerican Heart Association. Circulation. 2015;131:1806–18.
  3. Costa LP, Domiciano DS, Pereira RMR. Características demográficas, clínicas, laboratoriais e radiológicas da febre reumática no Brasil: revisão sistemática. Rev Bras Reumatol 2009;49(5):606-10.
  4. Romero CM, Ángel JF, Bermúdez AC, et al. Febre reumática, Consenso Nacional 2005. Rev Costarricense Cardiol 2005;6(1):59-62
  5. Khanna K, Liu DR. Acute Rheumatic Fever: An Evidence-Based Approach To Diagnosis And Initial Management. Pediatr Emerg Med Pract. 2016 Aug;13(8):1-23. Epub 2016 Aug 2. PMID: 27462838.
  6. Kurahara DK, Grandinetti A, Galario J, et al. Ethnic differences for developing rheumatic fever in a low-income group living in Hawaii. Ethn Dis 2006;16(2):357-61.
  7. Madden S, Kelly L. Update on acute rheumatic fever. it still exists in remote communities. Can Fam Physician 2009;55(5):475-8.
  8. Barbosa PJB, Müller RE, Latado AL, et al. Diretrizes Brasileiras para Diagnóstico, Tratamento e Prevenção da Febre Reumática da Sociedade Brasileira de Cardiologia, da Sociedade Brasileira de Pediatria e da Sociedade Brasileira de Reumatologia. Arq Bras Cardiol 2009;93(3 Supp 4):1-18.
  9. Rheumatic fever and rheumatic heart disease. World Health Organ Tech Rep Ser. 2004;923:1-122, back cover. PMID: 15382606.
  10. Marijon E, Ou P, Celermajer DS, et al. Echocardiographic screening for rheumatic heart disease. Bull World Health Organ. 2008;86:(2):84.
  11. Demarchi LMMF, Castelli JB. Aspectos anatomopatológicos da febre reumática. Rev Soc Cardiol 2005;15(1):18-27.
  12. Oliveira e col. Doença Reumática. Arq Bras Cardiol; 69, (1), 1997: 69-77 Rheumatic fever and rheumatic heart disease: report of a WHO expertconsultation on rheumatic fever and rheumatic heart disease. World Health Organization. Geneva, 2001 Oct 29 – Nov 1. Geneva: WHO; 2004.
  13. Xavier RMA, Nolasco M, Muller R, Santos M, Lima ABR, Lucas MJ, et al.PREFERE: da informação à prevenção. Editorial Laranjeiras. 2004; 1(4): 61-63.
  14. U.S. Department of Health and Human Services, National Institutes of Health,National Institute of Allergy and Infectious Diseases (USA) [Internet]. Jordan. Reporter 2007: accelerated development of vaccines. Disponível em:http://www3.niaid.nih.gov/about/organization/dmid/PDF/Jordan2007.pdf
  15. Pruksakorn S, Currie B, Brandt E, Martin D, Galbraith A, Phornphutkul C,et al. Towards a vaccine for rheumatic fever: identification of a conserved target epitope on M protein of group A streptococci. Lancet. 1994 Sep 3; 344 (8923): 639-42.
  16. Olive C, Hsien K, Horvath A, Clair T, Yarwood P, Toth I, et al. Protection against group A streptococcal infection by vaccination with self-adjuvanting lipid core M protein peptides. Vaccine. 2005 Mar 18; 23 (17-18): 2298-303.
  17. Vasan RS , Shrivastava S , Vijayakumar MD et al. Echocardiographic evaluation of patients with acute rheumatic fever and rheumatic carditis.
  18. Santos CCL, Aspectos clínicos e ecodopplercardiográficos de uma série de crianças em primeiro surto de febre reumática, sem sinais clínicos de cardite, 2006, (1-58). 
  19. Al Kasab S, Al Fagih MR, Shahid M, Habbab M, Al Zaibag M. Valve surgery in acute rheumatic heart disease: one-to four-year follow-up. Chest. 1988 Oct; 94 (4): 830-3.
  20. Saxena A, Kumar RK, Gera RP, Radhakrishnan S, Mishra S, Ahmed Z. Consensus guidelines on pediatric acute rheumatic fever and rheumatic heart disease. Indian Pediatr. 2008 Jul; 45 (7): 565-73.
  21. Meira ZM, Goulart EM, Colosimo EA, Mota CC. Long term follow up of rheumatic fever and predictors of severe rheumatic valvar disease in brazilian children and adolescents. Heart. 2005 Aug; 91 (8): 1019-22.
  22. Kaplan EL. Recent epidemiology of group A streptococcal infections in North America and abroad: an overview. Pediatrics. 1996 Jun; 97 (6 Pt. 2): 945-8.
0 0 votos
Avaliação do artigo
Se inscrever
Notificar de
guest
0 Comentários
Mais votado
O mais novo Mais velho
Feedbacks inline
Ver todos os comentários
0
Adoraria lhe escutar, por favor, comente.x