No contexto da ecocardiografia com estresse, a presença de alteração da contratilidade segmentar do ventrículo esquerdo (VE) induzida pelo esforço é um achado determinante para a indicação de revascularização coronária.
Porém, com a utilização de técnicas mais avançadas, uma avaliação mais ampla abrangendo não só a presença de déficit contrátil segmentar (abordagem “isquemia induzida”), mas também a reserva de fluxo coronária (abordagem “fisiológica”) da artéria descendente anterior (DA) pode fornecer informações adicionais quanto à tomada de decisão terapêutica.
É verdade, contudo, que a redução da reserva de fluxo pode ocorrer de forma associada ao déficit da contratilidade segmentar ou de forma isolada, como um fenótipo solitário em boa parte dos pacientes com doença arterial coronariana (DAC) crônica.
Se a presença de novo déficit contrátil (ou piora de um previamente existente) durante o esforço é um achado de grande valor para a decisão terapêutica, qual seria o papel de uma abordagem baseada na fisiologia da isquemia através da documentação da redução da reserva de fluxo ???
Estudos com técnicas invasivas, como FFR, sugerem que a revascularização guiada por parâmetros fisiológicos apresenta prognóstico melhor comparado com revascularização guiada apenas pela análise visual da angiografia coronária.
A hipótese primária desse estudo recentemente publicado no JASE seria, portanto, que uma reserva de fluxo coronária reduzida em pacientes com estenose significativa da DA pode identificar pacientes pacientes que teriam um maior benefício na indicação da revascularização coronária.
Estudo com pacientes com reserva de fluxo da DA reduzida, documentada através de ecocardiograma com dipiridamol, associada a estenose ≥ 50% na artéria descendente anterior e acompanhados durante o período de janeiro de 2003 e dezembro de 2022.
Os critérios de exclusão foram (1) janela ecocardiográfica subótima, (2) idade > 80 anos, (3) histórico de cirurgia de revascularização miocárdica, (4) doença valvar ou congênita significativa e (5) doença não cardíaca com prognóstico reservado.
Dos 5.580 pacientes inicialmente considerados para o estudo, 749 (66% homens, com idade média de 68 ± 9 anos) com reserva de fluxo reduzida, lesão em DA ≥ 50% e seguimento adequado compuseram a população do estudo.
A indicação do ecocardiograma com estresse foi suspeita de DAC (60%) ou estratificação de DAC previamente conhecida – 40% (histórico de infarto agudo do miocárdio prévio, revascularização coronária e/ou evidência angiográfica de lesão significativa na DA).
A reserva de fluxo coronária foi considerada reduzida quando ≤ 2.0. Além disso, presença de déficit contrátil segmentar (ou piora de déficit previamente existente) induzido pelo estresse foi considerado como critério de positividade para isquemia miocárdica.
Mortalidade por todas as causas foi o desfecho avaliado, apesar de que cirurgia de revascularização miocárdica (CRM) e intervenção percutânea foram também registradas.
Em relação aos achados ecocardiográficos, a média da fração de ejeção do VE de todos os participantes do estudo foi de 56% ± 9%. A presença de déficit contrátil induzido pelo estresse farmacológico foi documentada em 295 (39%) participantes. Desses, 269 tinham alteração segmentar no território da DA e outros 26, alteração contrátil em outros territórios “não-DA”.
O valor médio reserva de fluxo da DA foi de 1.59 ± 0.27, sendo menor nos 295 pacientes com déficit segmentar comparado com os outros 454 pacientes sem déficit contrátil l (1.51 ± 0.28 x 1.65 ± 0.25, P < 0.001). Pacientes com déficit segmentar no território da DA apresentaram menor reserva de fluxo em relação aqueles com alteração contrátil em território “não-DA” (1.49 ± 0.28 x 1.75 ± 0.18, P < 0.001).
A revascularização da DA foi realizada com sucesso em média 07 (2-29) dias após o ecocardiograma com estresse em 514 (69%) pacientes, sendo 388 por via percutânea (angioplastia) e 126 com CRM. A revascularização sempre envolveu a “artéria culpada”, enquanto que a decisão de revascularizar outras lesões se deu a partir de discussão em heart team.
Dos 514 pacientes revascularizados, 226 apresentaram déficit contrátil segmentar induzido pelo estresse enquanto que 288 apresentaram apenas redução da reserva de fluxo. Tanto os pacientes revascularizados (514) quanto os não revascularizados (234) receberam tratamento medicamentoso otimizado.
Aqueles pacientes que foram conduzidos de forma conservadora tiveram mais frequentemente DAC previamente conhecida, menor fração de ejeção (FE), redução menos significativa da reserva de fluxo e menor prevalência de déficit contrátil induzido pelo esforço.
Dentre os que foram tratados de forma invasiva, os que apresentaram redução da reserva de fluxo sem a presença de déficit contrátil segmentar tinham, com maior frequência, histórico de IAM prévio, passado de angioplastia, DAC previamente conhecida e maior incidência de alteração contrátil em repouso e redução mais significativa da reserva de fluxo.
Durante o seguimento médio de 6.4 ± 4.5 anos, foram registrados 185 (25%) óbitos. Mortalidade por todas as causas ocorreu em 110/514 (21%) nos pacientes revascularizados e em 75/235 (32%) naqueles tratados de forma conservadora.
A análise multivariada demonstrou que os indicadores de morte por todas as causas foram estratégia conservadora de tratamento (HR = 2.20; IC 95%, 1.63-2.98, P < 0.0001), idade (HR = 1.09, IC 95%, 1.06-1.11, P < 0.001), doença multiarterial ou de tronco de coronária esquerda (HR = 2.09; IC 95%: 1.53-2.86; P < 0.0001), presença de alteração da contratilidade segmentar no pico do esforço (HR = 2.20; IC 95%: 1.12-4.30; P = 0.02) e FEVE (HR = 0.97; IC 95%: 0.95-1.00, P = 0.04).
A sobrevida em 10 anos de todo o estudo foi de 70%. Esta sobrevida foi notadamente menor nos pacientes tratados de forma conservadora comparados com aqueles tratados de forma invasiva (53% x 76%, P <0.001), sem diferença significativa entre aqueles com apenas redução da reserva de fluxo e aqueles com redução da reserva de fluxo associada a presença de déficit contrátil segmentar induzido pelo esforço.
As curvas de sobrevida, demonstradas na figura 03, ajustadas pela estratégia de tratamento confirmam uma sobrevida menor entre aqueles com tratamento conservador.
A taxa de mortalidade anual foi de 7.3% no grupo do tratamento conservador e de 2.9% no grupo da estratégia invasiva (P<0.0001). Aqueles que foram tratados de forma conservadora, a taxa anual de mortalidade foi de 10.9% nos que apresentaram déficit contrátil e de 6.4% naqueles com redução isolada da reserva de fluxo (P = 0.09).
Já no grupo da abordagem invasiva, a mortalidade anual foi de 3.0% naqueles com alteração da contratilidade segmentar e de 2.9% nos com apenas redução da reserva de fluxo (P = 0.74). A mortalidade foi de 77/388 nos pacientes que realizaram angioplastia e de 33/126 nos pacientes submetidos a CRM (20% x 26%, P = 0.13).
Na subanálise de 525 pacientes sem déficit segmentar em repouso e que foram candidatos à revascularização, a taxa anual de mortalidade foi de 2.4% nos 386 pacientes que de fato realizaram o procedimento e de 5.1% naqueles não revascularizados (P = 0.0009).
Considerando aqueles com déficit contrátil induzido pelo esforço (227), a taxa anual de mortalidade foi de 2.4% nos 187 pacientes revascularizados e de 6.5% nos 40 indivíduos não revascularizados (P = 0.005).
Já naqueles sem déficit contrátil induzido pelo esforço (n = 298), essa taxa foi de 2.4% nos 199 pacientes revascularizados e de 4.7% nos outros 99 não revascularizados (P = 0.01).
Os autores concluem, portanto, que uma reserva de fluxo reduzida se associa a um pior prognóstico naqueles pacientes conduzidos de forma conservadora comparados com os que foram submetidos à estratégia invasiva, seja por angioplastia ou CRM.
A indicação de revascularização pela abordagem fisiológica, baseada pela presença de reserva de fluxo reduzida, conferiu uma vantagem prognóstica de forma significativa e independente da presença de déficit contrátil induzida pelo esforço, sendo preditor de desfecho (no caso, morte por todas as causas) em pacientes com DAC crônica e lesão anatomicamente significativa na DA.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN) e em Cardiologia pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.