A insuficiência aórtica (IAo) constitui com condição clínica que se associa a uma sobrecarga ventricular tanto volumétrica quanto pressórica, contudo, em razão de seu caráter insidioso, este padrão hemodinâmica costuma ser tolerado de forma assintomática durante anos até que surja a disfunção ventricular esquerda propriamente dita.
Aqui, o surgimento de sintomas constitui um marco na evolução desta doença. Não à toa, a diretriz atual da ACC/AHA recomenda a cirurgia valvar quando na presença de sintomas ou quando já existem complicadores como disfunção ventricular esquerda pela redução da fração de ejeção < 50% e dilatação do ventrículo esquerdo (diâmetro diastólico final > 65 mm, diâmetro sistólico final > 50 mm). Vale ressaltar que estes parâmetros são baseados em estudos antigos das décadas de 1990 e 2000.
Mas o tempo passa e novas informações surgem …
Já se sabe, por exemplo, que a avaliação da cavidade ventricular esquerda por volumes, ao invés da análise por diâmetro, se mostra mais acurada para detectar o remodelamento cardíaco do ventrículo esquerdo (VE), o qual não ocorre de forma simétrica na IAo.
Estudos mais recentes, ainda, já demonstraram que a mortalidade começa a aumentar em estágios iniciais de dilatação do VE, com o diâmetro sistólico final > 20 mm/m² quando comparado com o ponto de corte de 25 mm/m² utilizado atualmente pela diretriz citada.
Isso quer dizer que antes mesmo do surgimento dos sintomas e, sobretudo, da redução da fração de ejeção, existe uma fase de disfunção subclínica que deve ser levada em consideração e melhor avaliada por nós ecocardiografistas. Nesta fase (disfunção subclínica) já existem marcadores, validados pela literatura médica, capazes de documentar a disfunção ventricular mesmo na presença de fração de ejeção preservada.

Neste cenário, o strain longitudinal ganha destaque, sendo capaz de identificar disfunção ventricular esquerda subclínica e com impacto prognóstico nos pacientes com IAo crônica assintomática.
Um estudo recentemente publicado no JACC avaliou a presença desses potenciais marcadores de disfunção sistólica precoce na IAo crônica assintomática em relação a sua prevalência e sua importância prognóstica.

Foram avaliados 673 pacientes com IAo moderada a severa e com IAo severa, assintomáticos, entre 2004 e 2019. Pacientes com IAo por (1) endocardite infecciosa em atividade, (2) dissecção de aorta, (3) associada a outra doença valvar (em câmaras esquerdas) pelo menos moderada, (4) com passado de cirurgia valvar anterior, (5) cardiomiopatia isquêmica, (6) cardiomiopatia hipertrófica, (7) dispositivos de assistência ventricular ou (8) amiloidose cardíaca foram excluídos.

Insuficiência aórtica moderada a importante foi considerada como aquela com volume regurgitante 45-60 ml e a IAo importante, aquela com voluem regurgitante ≥ 60 ml.
O desfecho primário foi sobrevida sem regurgitação valvar aórtica e, entre aqueles com IAo importante assintomática, os que apresentaram os marcadores de disfunção sistólica precoce foram comparados com aqueles que preenchiam as indicações classe Ia (fração de ejeção < 55%) e IIa (diâmetro sistólico final > 50 mm ou indexados > 25 mm/m²) para a abordagem cirúrgica.
Os marcadores de disfunção sistólica precoce avaliados foram: (1) fração de ejeção < 60%, (2) volume sistólico final ≥ 45 ml/m² e (3) strain global longitudinal < 15% – esses parâmetros foram considerados com bases em estudos recentes que mostraram associação com maior mortalidade.
A idade média dos participantes foi de 57.3 ± 17.4 anos, sendo 97 (14.4%) mulheres. 44.7% dos pacientes tinham hipertensão arterial sistêmica (HAS) e 273 (40.7%) tinham valva aórtica trivalvular. A fração de ejeção do VE (FEVE) foi < 60% em 296 (44%) pacientes e o strain global longitudinal (SGL) foi < 15% em 25.3% dos participantes. Ainda, um volume sistólico final indexado (VSFi) ≥ 45 ml/m² foi observado em 261 pacientes (38.8%), enquanto que 297 participantes (45.1%) tinham diâmetro sistólico final ≥ 20 mm/m².
A presença de um desses marcadores de disfunção precoce foi observada em 170 pacientes (25.3%), dois desses em 148 pacientes (22%) e três marcadores, em 114 pacientes (16.9%). Um total, portanto, de 188 (27.9%) pacientes não tinham nenhum marcador de disfunção sistólica precoce.

Durante o seguimento médio de 2.5 anos (0.28-6.7 anos), 69 pacientes morreram e 281 foram submetidos a cirurgia de troca valvar aórtica. As recomendações classes Ia e IIa para a indicação cirúrgica estavam presentes em apenas 137 (20.4%) dos pacientes, enquanto que 284 (42.2%) pacientes demonstravam pelo menos 01 dos 03 marcadores de disfunção sistólica precoce.
O marcador mais comumente observado foi a FEVE < 60% (56.7%), seguido do VSFi ≥ 45 ml/m² (56.3%) e do SGL < 15% (35.3%).
Foi observado um aumento da mortalidade naqueles pacientes com indicações classes Ia ou IIa (HR: 4.22 [95%CI: 2.15 8.29]; P<0.001) e naqueles pacientes com algum marcador de disfunção sistólica precoce (HR: 2.18 [95% CI: 1.21-3.92]; P = 0.009) quando comparados com pacientes sem nenhum destes parâmetros.

Quando os 03 marcadores de disfunção sistólica precoce foram documentados, a presença de apenas 01 deles se associou a uma maior mortalidade, embora sem significância estatísticas na comparação com a ausência destes marcadores (HR: 1.84
[95%CI:0.97-3.50]; P = 0.063), assim como na presença de 02 marcadores (HR: 3.39 [95%CI: 1.72-6.68]; P < 0.001).

Um índice maior de mortalidade foi observado quando na presença de todos os 03 marcadores (HR: 5.46 [95%CI: 2.51-11.90]; P<0.001). A mortalidade em 5 anos pela análise Kaplan-Meier foi de 33% naqueles sem nenhum marcador, 59% no grupo com indicação cirúrgica classes Ia e IIa e de 44% nos pacientes que apresentaram algum marcador de disfunção precoce (P < 0.001).

Quando ajustado por idade, sexo e comorbidades, pelo modelo de regressão Cox para análise de variável independente, o modelo clínico atual (diretrizes) foi de 0.796 (95%IC: 0.741-0.850), com aumento para 0.833 quando adicionado a variável FE < 60% (HR: 2.54 [95%CI: 1.55-4.17]; P <0.001).
O marcador FEVE < 60% teve o menor AIC*, sugerindo que este parâmetro melhor se relaciona com o modelo de associação com mortalidade comparado com os outros marcadores.
*Em estatística, AIC (Akaike Information Criterion) é um critério para avaliação e seleção de modelos estatísticos. Ele quantifica a qualidade de um modelo, levando em conta o ajuste aos dados e a sua complexidade (número de parâmetros). Modelos com AIC mais baixo são geralmente preferidos, indicando melhor ajuste.
De forma similar, o VSFi ≥ 45 ml/m² (HR: 2.27 [95%CI: 1.34-3.84];P¼0.002) e o SGL < 15% (HR: 2.25 [95% CI: 1.36-3.73]; P = 0.009) aumentaram o valor pelo modelo de regressão Cox bem como apresentaram menores AIC.

O presente estudo traz alguns achados importantes:
- A presença de algum parâmetro de recomendação Ia e IIa de fato se associa com maior mortalidade por todas as causas quando comparados com os marcadores de disfunção sistólica precoce;
- As taxas de mortalidade aumentam significativamente com o número de marcadores de disfunção sistólica precoce presentes;
- A presença de 03 marcadores de disfunção precoce se mostrou como um forte fator de associação no valor incremental para prever mortalidade;
- Apenas 20.4% dos pacientes apresentavam indicação classe Ia ou IIa para indicação cirúrgica, enquanto que 42.2% apresentam pelo menos 01 dos 03 marcadores de disfunção precoce.
Esses achados sugerem que uma proporção substancial dos pacientes podem ser candidatos para uma intervenção invasiva mais precoce. Estudos recentes apontam que até 1/3 dos pacientes podem apresentar aumento volumétrico (VSFi ≥ 45 ml/m²) mesmo com diâmetros do VE ainda fora do ponto de corte para indicação cirúrgica.
Um fato que merece ser destacado é que o resultado estatístico superior do marcador FEVE < 60% em relação ao SGL < 15% pode ser justificado, segundo os autores, pela ausência de dados referentes ao SGL em 28% dos pacientes avaliados e não propriamente relacionado ao ponto de corte, uma vez que tanto o valor < 15% quanto o valor < 19% do SGL apresentaram valores semelhantes de AIC.

Da mesma forma, a necessidade de uma curva de aprendizado para a realização da técnica do strain longitudinal e pela limitação em razão da qualidade das imagens também foram citadas como possíveis fatores relacionados aos achados.

A conclusão do estudo, então, foi que, na ausência de indicações clássicas para intervenção cirúrgica nos pacientes com IAo crônica, a presença de pelo menos dois dos marcadores de disfunção sistólica precoce avaliados pode identificar aqueles pacientes sob maior risco por maiores taxas de mortalidade e que talvez possam se beneficiar de uma abordagem invasiva mais precoce.


Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN) e em Cardiologia pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.