A insuficiência mitral (IMi) está entre as valvopatias mais comuns do mundo, com prevalência estimada, nos Estados Unidos, em 4 milhões em 2030.
De mecanismos diferentes, a correta definição etiológica da IMi é passo crucial para o seguimento e tratamento destes pacientes. Temos, para tal, a Classificação de Carpentier e também a subdivisão entre IMi primária (orgânica) e secundária.
Dentro do contexto da IMi secundária, temos a funcional ventricular em que ocorre um desbalanço entre as forças de tração decorrentes do remodelamento global ou regional do ventrículo esquerdo (VE), promovendo o deslocamento ápico-lateral dos músculos papilares (tethering dos folhetos), e as forças de fechamento por redução da contratilidade e dissincronia.
Também temos a IMi funcional atrial, um conceito mais recente e historicamente atribuído à dilatação do anel mitral.
Mas será que o aumento anular é o único mecanismo associado a este tipo de disfunção valvar?? Trago aqui uma excelente revisão, publicada no ABC Imagem do DIC, de autoria do (também excelente) Alex Pretto (@alexpretto.cardio).
A disfunção atrial esquerda e o aumento de pressão em seu interior, promovendo dilatação do átrio esquerdo (AE) e do anel mitral, levam a um deslocamento do anel valvar posterior para a crista da via de entrada do VE. Esta é uma compreensão amplamente aceita como sendo a gênese da IMi atrial funcional, porém novas pesquisas demonstram outros mecanismos associados:
DILATAÇÃO ISOLADA DO ANEL MITRAL: em análise retrospectiva com 53 pacientes encaminhados para a primeira ablação de fibrilação atrial (FA) e que apresentavam IMi moderada a severa, tipo I (Carpentier) com fração de ejeção (FE) > 50%, ficou demonstrado que o fator mais importante para a presença de IMi nesses pacientes foi a dimensão do anel mitral (P = 0.004).
Outro estudo com 170 pacientes com FA, valva mitral estruturalmente normal, função e dimensões normais do VE e submetidos à tomografia com multidetectores realizada antes da ablação mostrou que os pacientes com IMi moderada e severa apresentavam maior perímetro, área anular e diâmetros intercomissurais e anteroposterior em relação aos pacientes sem IMi.
REMODELAMENTO INSUFICIENTE DOS FOLHETOS: as valvas cardíacas são capazes de apresentar crescimento compensatório dos folhetos secundário à dilatação anular e às dimensões cardíacas (isto é incrível!!!). Isso ocorre graças às celulas endoteliais-mesenquimais.
Kagiyama et al., encontrou área diastólica dos folhetos significativamente maior em pacientes com FA sem IMi em comparação com o grupo controle. Kim et al., por sua vez, observou que a relação da área total dos folhetos (ATF) sobre área anular mitral (AAM) foi significativamente menor no grupo IMi quando comparado com o grupo sem IMi e grupo controle.
Na maioria dos pacientes com IMi significativa, a relação ATF/AAM foi menor que 1,4.
Este achado demonstra que quando o anel mitral se dilata significativamente, o aumento dos folhetos não o acompanha, atingindo um platô, e essa adaptação insuficiente contribui para o aparecimento da IMi.
MODIFICAÇÕES NA CONTRATILIDADE ANULAR E NA FORMA EM SELA: a contração do anel valvar começa na diástole tardia e continua durante a mesossístole, resultando numa redução de aproximadamente 25% de sua área.
Estudos anatômicos sugerem que durante a diástole tardia, o anel mitral se estreita por causa das fibras circunferenciais que contornam a base do AE (contração atrial atriogênica), enquanto na sístole o estreitamento anular é facilitado pelas fibras oblíquas superficiais da via de entrada do VE – twist basal (contração anular ventriculogênica).
Na FA identifica-se achatamento do anel mitral e perda da movimentação anular. Esse achatamento, por sua vez, aumenta o estresse valvar levando à fibrose, espessamento e calcificação.
TETHERING ATRIOGÊNICO DOS FOLHETOS: enquanto o anel anterior da valva mitral está ligado à aorta, em uma posição mais fixa e estável do coração, o ânulo posterior está ancorado entre o AE e a crista da via de entrada do VE.
Com o aumento do AE, o anel valvar posterior é empurrado para a superfície epicárdica da parede basal posterior. O folheto posterior acompanha também esse movimento, aumentando a distância ânulo-papilar e causando um ângulo mais abrupto e maior curvatura em direção ao VE (tethering posterior assimétrico atriogênico).
E quais seriam as manifestações ecocardiográficas relacionadas a IMi funcional atrial?
1- Hamstringing: identificado como um movimento bloqueado do folheto posterior, o qual fica praticamente paralisado, favorecendo jatos excêntricos;
2- Bending: caracterizado como uma dobradura ou arqueamento do folheto posterior com formação de uma angulação entre o folheto posterior e o folheto anterior. Uma relação (ângulo do folheto posterior e ângulo do folheto anterior) maior ou igual a 3,1 define bending, segundo Okamoto et al. Pacientes com bending apresentaram sobrevida significativamente menor após seguimento de 36 meses (63% x 78%, P = 0.047).
3- Pseudoprolapso do folheto anterior: a borda livre do folheto anterior não encontra a borda do folheto posterior que está tracionado, levando a uma falha de coaptação e à impressão falsa de um prolapso.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.
Dr Caio, boa tarde. Excelente texto com base no artigo.Chama-nos a atenção por ser um tema com um bom número de casos na prática visto o número de pacientes com FA, ICFEp e o remodelamento atrial.
Muito bom!! Obrigada