A β-talassemia (forma principal das talassemias) é uma hemoglobinopatia hereditária que resulta em anemia hemolítica crônica pela síntese deficiente de hemoglobina B, levando a eritropoiese ineficaz, requerendo, usualmente, múltiplas transfusões sanguíneas ao longo da vida.. Com a globalização e, consequente imigração populacional, esta doença deixou de ser típica da região do mediterrâneo e passou a ser de ordem global (incidência estimada em 1.5% da população mundial).
A necessidade de terapia transfusional regular durante toda a vida cria um estado de sobrecarga de ferro e uma vez saturadas as reservas reticuloendoteliais, a deposição de ferro aumenta no miocárdio, assim como em outros tecidos parenquimatosos.
As complicações cardíacas decorrentes dessa deposição representam a principal causa de morbimortalidade (71%) nestes pacientes. Após uma primeira década silenciosa, os depósitos de ferro (Fe) no tecido cardíaco levam a arritmias, disfunção sistólica e diastólica, e insuficiência cardíaca na segunda ou terceira décadas.
A dita cardiomiopatia induzida pela β-talassemia possui dois fenótipos distintos de apresentação: miocardiopatia dilatada, com dilatação e disfunção ventricular, e o fenótipo restritivo, em que há aumento das pressões de enchimento, hipertensão pulmonar e disfunção ventricular direita.
Apesar de ter uma fisiopatologia multifatorial, o fator central que leva ao acometimento cardíaco é a sobrecarga de ferro, causada tanto pela necessidade frequente de hemotransfusão, bem como pela hemólise e aumento da absorção intestinal de ferro.
Antes do advento da terapia com quelante de Fe, as complicações cardiovasculares eram ainda mais frequentes e de forma variada, com pericardite, miocardite, disfunção ventricular induzida por alto débito cardíaco, além de arritmias. Contudo, mesmo com o uso de quelantes, a toxicidade cardíaca pelo acúmulo de Fe continua sendo a principal causa de morte nesses pacientes.
# Acometimento biventricular: é a forma mais comum entre os pacientes com β-talassemia major, com disfunção ventricular e subsequente baixo débito cardíaco. Aqui, habitualmente há uma deposição extensa de Fe no tecido miocárdico;
# Miocardite/Pericardite: em uma séria com 1.048 pacientes, 4.5% destes (idade média de 15 anos) foram diagnósticos com insuficiência cardíaca, ao longo de 9 anos de seguimento, com biópsia endocárdica confirmando miocardite como o fator desencadeante. Em quase metade dos casos houve recuperação (remodelamento reverso) completa, porém o índice de mortalidade foi de 44%. Existe uma razão multifatorial que envolve queda da imunidade (e maior propensão à infecções), predisposição genética e a ação direta do Fe nos cardiomiócitos. A pericardite, por outro lado, vem sendo cada vez mais rara após o início da terapia com quelantes de ferro.
# Miocardiopatia restritiva: aqui temos um padrão restritivo na avaliação da função diastólica do VE, com ventrículos não dilatados e, numa fase inicial, com função sistólica preservada. Em uma parcela significativa de pacientes, esse padrão é acompanhado de disfunção ventricular direita e hipertensão pulmonar.
# Função ventricular esquerda preservada em pacientes assintomáticos: alguns pacientes, mesmo assintomáticos, podem evoluir com dilatação de câmaras cardíacas com hipertrofia excêntrica, resultantes da anemia crônica, mantendo a função ventricular esquerda preservada. Este padrão é mais observado na β-talassemia intermedia, e arritmias, como fibrilação/flutter atrial, são comuns nesses pacientes.
Vamos ver um exemplo (LINK) de como o acometimento cardíaco pode se apresentar:
Paciente do sexo feminino, síria, de 14 anos de idade, portadora de Talassemia Major, compareceu ao pronto-socorro com um histórico de três meses de aumento de fadiga, dispneia e distensão abdominal. Seu histórico médico revelou que ela tinha sido diagnosticada com Talassemia Major com um ano de idade, e recebeu transfusão irregular de eritrócitos e terapia quelante de ferro em seu país. Verificou-se que a adesão à transfusão de sangue e terapia quelante prévias tinha sido muito deficiente. No exame geral, ela estava desnutrida, com baixa estatura (peso corporal <25p, estatura <3p) e o exame físico revelou dispneia, com característica de talassemia facial típica, sem cianose.
A radiografia de tórax mostrou áreas de consolidação em ambos os lados dos pulmões e aumento da relação cardiotorácica:
O eletrocardiograma mostrou ritmo sinusal com frequência cardíaca de 70 batimentos/min e prolongamento do valor do QTc de 0,46 segundos:
O ecocardiograma transtorácico revelou disfunção ventricular sistólica e diastólica do ventrículo esquerdo; a fração de ejeção do ventrículo esquerdo de 48%, com dilatação leve do ventrículo esquerdo. Havia regurgitação mitral leve a moderada, e derrame pericárdico leve.
Chamava a atenção folhetos da valva tricúspide imóveis e espessados em posição aberta e fixa, causando má coaptação e regurgitação grave sem estenose.
Na janela a apical 4C mostrou folhetos imóveis da valva tricúspide, na diástole, em posição aberta e fixa, como mostrado pelo Doppler colorido.
Também foram observados dilatação do átrio direito e ventrículo direito e regurgitação pulmonar mínima com hipertensão pulmonar leve.
A preocupação com o acometimento cardíaco é tamanho que existem recomendações para uma estratificação de risco para que seja uniformizada a forma de seguimento destes pacientes.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.