Ecocardiografia Esportiva: Zona Cinzenta – Trabeculação Excessiva

Ainda no clima da trabeculação excessiva no contexto da cardiologia do esporte, vou trazer um caso clínico da vida real para que possamos “discutí-lo” por aqui.

Homem, 33 anos de idade, praticante de vôlei de praia “há muitos anos”, com média de 02 horas de treinos por dia, 5-6x/semana, de alta intensidade, às vezes de forma competitiva (circuito amador), além de treino adicional de musculação visando fortalecimento muscular e prevenção de lesão.

Assintomático, vem para avaliação em cardiologia do esporte. Sem histórico familiar digno de nota, informa uso prévio (parou por conta própria) de Benazepril por episódios de pressão arterial elevada e passado de tratamento para transtorno de ansiedade generalizada.

Nos últimos 03 anos passou a usar esteroides anabolizantes em doses suprafisiológicas com o objetivo de melhorar a performance e recuperação muscular.

Informa diagnóstico prévio de “não compactação“, apresentando ressonância magnética cardíaca com critérios de imagem para fenótipo patológico.

Neste exames observamos aumento tanto do ventrículo esquerdo (diâmetro diastólico final 68 mm – VR < 56 mm) quanto do ventrículo direito (maior eixo 97 mm – VR 65-95 mm), com aumento dos volumes diastólicos finais e função sistólica preservada. Temos, portanto, um padrão de adaptação tipo excêntrica.

Tem holter 24h com frequência cardíaca média de 64 bpm, sem ectopias ventriculares documentadas e 31 extrassístoles supraventriculares isoladas.

Teste cardiopulmonar com VO2 máximo com 114% do previsto, curva de pulso de O2 sem alterações e ausência de alterações eletrocardiográficas dignas de nota.

Ecocardiograma com espessura diastólica das paredes normal (septo 10 / parede posterior 10), diâmetro diastólico final do ventrículo esquerdo no limite superior da normalidade (58 mm) e fração de ejeção de 59%. Volume indexado do átrio esquerdo 30.5 ml/m².

Parâmetros de função diastólica normais, com diâmetro basal do ventrículo direito de 39 mm.

Chamava atenção a presença de trabeculação excessiva e proeminente, de forma mais acentuada na região apical, contudo acometendo também os segmentos médios e basais das paredes anterolateral e anterior do ventrículo esquerdo.

Descrevi esse padrão de trabeculação excessiva, na análise convencional, da seguinte forma:

Porém, contudo, todavia, NÃO EXISTE avaliação de atleta sem técnicas avançadas em ecocardiografia, ou seja, strain e trabalho miocárdico, e medidas no repouso e durante esforço (no caso, esforço isométrico com handgrip).

Esquerda: repouso; direita: esforço

Strain global longitudinal com padrão heterogêneo e maiores taxas de deformação nos segmentos apicais (18-21%), com valor global de 16,5% (ainda dentro da faixa de normalidade para o tipo, tempo e carga de treino), manutenção da onda de ativação ascendente em todos os segmentos e com índice de dispersão mecânica normal (PSD = 49 ms) no repouso.

No esforço, observa-se aumento do valor global (16.5% –> 17.3%), manutenção do padrão heterogêneo, manutenção da curva de ativação ascendente apesar de valores menores nos segmentos basal e médio da parede anterolateral.

Aqui temos o primeiro complicador: pensando puramente na não compactação, um padrão heterogêneo não seria esperado para adaptação induzida pela atividade física de alta intensidade, embora haja uma redução esperada da deformação nos segmentos basais de indivíduos treinados praticantes de modalidades de endurance (ou alta carga de esforço dinâmico). Contudo, este padrão descrito acima é muito característico da injúria miocárdica induzida por esteroides anabolizantes. Portanto aqui teríamos uma sobreposição de padrões, gerando confusão diagnóstica (???).

Esquerda: repouso; direita: esforço

Em repouso, a eficiência global está mantida (GWE 96%), com valores normais de trabalhos construtivo e desconstrutivo. Nota-se, porém, perda da curva de ativação ascendente no segmento médio da parede anterior. Os maiores valores são observados nos segmentos apicais.

Durante o esforço isométrico há uma discreta redução da eficiência global, porém ainda dentro da normalidade (GWE 95%), com retorno da ativação ascendente na parede anterior, porém com perda deste padrão no segmento médio da parede inferolateral e aumento compensatório do trabalho no segmento basal desta região. Há um incremento de 25% do trabalho construtivo, porém com aumento desproporcional do trabalho desconstrutivo (GWW 66 mmmHg% —> 121 mmHg%).

Também chama atenção a perda de ativação ascendente no segmento apical da parede inferolateral e padrão compensatório nos segmentos médios e apicais das regiões inferosseptal e anterosseptal.

Estaríamos aqui diante de uma terceira possibilidade: além da não compactação e da cardiomiopatia induzida por esteroides anabolizantes, haveria ainda doença arterial coronária (DAC) subclínica – este padrão de perda da ativação ascendente associada ao aumento compensatório do trabalho pode indicar DAC não obstrutiva.

O strain circunferencial mostrou um padrão habitual de rotação (base no sentido horário e ponta no sentido anti-horário), contudo com valores reduzidas da rotação apical e do twist (padrão esperado para um coração de atleta de endurance adaptado).

Já no esforço, há uma diminuição do twist, apesar do aumento (discreto) da rotação apical. Neste momento, a resposta para este tipo de adaptação seria de aumento mais acentuado da rotação apical.

Esquerda: repouso; direita: esforço

Esta, na minha opinião, seria parte fundamental da análise deste caso. No fenótipo patológico, esperaríamos uma rotação apical reduzida (é verdade), mas diante de trabeculações tão grosseiras, confesso que o padrão de rotação em corpo rígido fosse o provável neste paciente. Na adaptação pela atividade física de alta intensidade, por sua vez, temos em repouso um twist condizente com este fenótipo, mas que “não responde” da forma como deveria (em relação ao aumento da rotação apical) durante o esforço isométrico.

Até aqui, as seguintes possibilidades vieram à minha cabeça:

1- Temos um padrão de adaptação que fugiria um pouco do que encontramos na litertura: o paciente não é negro e participa de uma modalidade que, apesar de ter alto componente dinâmico, exige muita força e explosão muscular associadas. Ou seja, esperaria aqui um padrão de adaptação mais para misto;

2- Apesar de não preencher rigorosamente os critérios adotados para não compactação no atleta (FE < 50% ou 45%, sintomas, histórico familiar, arritmia ventricular documentada …), há a possibilidade de estarmos diante de uma cardiomiopatia ainda não amplamente manifestada do ponto de vista fenotípico, ou seja, um padrão inicial de doença;

3- O uso de esteroides anabolizantes “mascara” a análise ao assumir um padrão heterogêneo no strain longitudinal, dificultando ainda mais o entendimento dos achados ecocardiográficos.

A conduta adotada foi:

1- Iniciado IECA e betabloqueador para controle pressórico e tratamento direcionado para toxicidade induzida por esteroides anabolizantes;

2- Ajuste do eixo hormonal com profissional capacitado (endocrinologista) com o objetivo de manter a testosterona em níveis fisiológicos e, se possível, suspender a utilização exógena de hormônio;

3- Solicitado angiotomografia de artérias coronárias para descartar a possibilidade de DAC subclínica em razão do padrão do trabalho miocárdico observado durante o esforço;

4 – Nova avaliação ecocardiográfica (com recursos avançados) após 03 meses do início do tratamento para uma nova análise sem o “fator hormonal” como confundidor.

E vocês, o que acham: Opinem nos comentários para juntos aprendermos mais…

E você aí achando que cardiologia do esporte é moleza, heimmmm ?!!!!!

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