O número de praticantes de atividade física tem aumentado de forma exponencial e é cada vez mais frequente a presença de pacientes nos nossos consultórios que fazem atividade física de alta intensidade, sejam eles atletas ou não.
Os benefícios da atividade física regular para a saúde cardiovascular são amplamente conhecidos, contudo é preciso ter um entendimento um pouco mais amplo sobre às alterações adaptativas (funcionais e estruturais) que o exercício físico de alto rendimento causa no sistema cardiovascular.
Então, se você acha que a avaliação dessa população se restringe simplesmente à avaliação pré participativa, você (assim como eu) ficará assustado com o quanto esse mundo (ecocardiografia do esporte, mais especificamente) é complexo e desafiador!!!!
Quem acompanha a ECOPE já percebeu que a escola agora tem um novo curso, sob o comando do Dr. João Giffoni, sobre ecocardiografia do esporte. Eu participei do curso, como aluno, e, desde então, estou completamente impressionado com o que vi (a cabeça à mil). Por isso, resolvi trazer aqui no blog alguns pontos iniciais (digamos, uma introdução) sobre como o ecocardiografista pode ajudar este perfil de paciente.
As doenças cardiovasculares podem se manifestar de diferentes formas nos atletas, desde identificação de fatores de risco durante uma avaliação pré participativa, até episódio de morte súbita durante a prática esportiva. De forma geral, atletas jovens são mais comumente acometidos por doenças congênitas ou geneticamente determinadas, enquanto que os mais velhos, por doenças adquiridas.
Atenção: o fato de uma pessoa ser atleta ou praticar atividade física de alta intensidade não faz dela obrigatoriamente uma pessoa sem doença!!!
Então, antes de falarmos sobre a interpretação dos métodos de imagem (sobretudo o ecocardiograma), precisamos entender alguns conceitos amplos e complexos sobre o remodelamento cardíaco induzido pelo exercício físico (o famoso coração de atleta). Já adianto, o grande desafio será diferenciar as alterações adaptativas das patológicas.
[CONCEITO – Esportista x Atleta ] Qualquer pessoa que pratica algum esporte individual ou coletivo pode ser considerada um esportista, ou seja, todo atleta é um esportista, mas o contrário não é verdade. A diferença entre eles se relaciona ao nível de intensidade de treinamento e os objetivos buscados através da prática do esporte. [CONCEITO – Remodelamento cardíaco induzido pela atividade física ] Remodelamento cardíaco induzido pela atividade física é definido como o processo pelo qual o coração e vasos mudam funcional e estruturalmente em resposta à exposição repetitiva ao exercício físico. Isso ocorre em razão de condições hemodinâmicas e neuro-hormonais existentes durante a prática esportiva que, por sua vez, são distintas à depender do tipo de estímulo. Portanto, é fundamental entender a fisiologia dos diferentes tipos de treinamento para fazer uma correlação correta entre os achados cardíacos encontrados e o tipo de esporte praticado.Partindo deste conceito, vamos então fazer uma subdivisão (teórica) entre os tipos de treinamento:
[CONCEITO ] Treinamento isotônico (endurance): aqui temos um regime de aumento sustentado do débito cardíaco com resistência vascular periférica normal ou até mesmo reduzida. Enquadram-se nessa modalidade os atletas de corridas de longa distância, ciclistas e nadadores, por exemplo.Esse tipo de estímulo expõe o coração a uma sobrecarga volumétrica, o que pode resultar em aumento das 4 câmaras cardíacas.
[CONCEITO ] Treinamento isométrico (força): ocorre um aumento da resistência vascular periférica, de forma pulsátil, com débito cardíaco apenas levemente aumentado. Nesse espectro, temos os levantadores de peso, fisiculturistas por exemplo.O coração será exposto a uma sobrecarga pressórica, exigindo muito do ventrículo esquerdo e com impacto hemodinâmico mínimo nas demais câmaras cardíacas.
[CONCEITO ] Treinamento misto: situações em que há treino isotônico e também isométrico em alta intensidade: lutas, por exemplo.Se considerarmos atletas de alto rendimento, seria um equívoco separarmos as modalidades apenas baseando-se nesta subdivisão. Sabemos que os treinamentos de alta performance envolvem tanto treinos de força associados ao treinamento aeróbico. Contudo, haverá um componente predominante de estímulo para cada modalidade e isso irá ajudar no entendimento das alterações cardíacas encontradas.
Além do tipo de treinamento, devemos considerar alguns fatores importantes para a correta interpretação desses corações:
- Sexo: atletas mulheres habitualmente apresentam menos remodelamento fisiológico quando comparadas com atletas homens. Uma análise com 600 atletas de elite na Itália mostrou cavidades cardíacas menores em mulheres (11% menor, P < 0.001) e menor espessura miocárdica (23% menor, P <0.001) quando comparadas com atletas do sexo masculino;
- Etnia: atletas afrodescendentes tendem a apresentar hipertrofia mais pronunciada quando comparados com atletas caucasianos;
- Tempo de treinamento: um estudo com 12 sedentários que iniciaram um programa de treinamento para correr uma maratona observou um padrão bifásico: (1) hipertrofia concêntrica, com aumento da espessura da parede no período 0-6 meses; (2) hipertrofia excêntrica, com dilatação do ventrículo esquerdo no período 6-12 meses;
- Genética: já são conhecidos vários genes cujo polimorfismo pode favorecer a algum tipo de remodelamento específico.
Em um estudo americano, por sua vez, com aproximadamente 500 atletas universitários, apenas 25% excedeu os limites considerados como normais para cada sexo. A maioria dos atletas avaliados tinha os diâmetros cavitários do VE normais, indicando que nem todo atleta vai apresentar remodelamento.
Desta forma, portanto, não se recomenda determinar valores de DDVE ou de volume diastólico final para diferenciar adaptação de doença!
Leve espessamento das paredes do VE, com ou sem dilatação do VE, pode se desenvolver em atletas. A hipertrofia excêntrica (ou seja, aumento leve do espessamento com dilatação de cavidade) é um achado comum entre atletas que apresentam alto nível de treinamento isotônico associado ao treinamento isométrico, como nos casos dos ciclistas e atletas do remo.
Já atletas de levantamento de peso e futebol americano (a depender de qual função do atleta), por exemplo, podem apresentar um espessamento leve das paredes do VE (espessura relativa > 0.42), dado o tipo específico de treinamento, com quase nenhum componente isotônico.
O espessamento da parede do VE atribuído ao remodelamento pelo exercício físico, independente de ser do tipo excêntrico ou concêntrico, dificilmente excede 12-13 mm de espessura em atletas caucasianos. Uma prevalência muito baixa (0.4%) de espessura da parede do VE > 12 mm foi observada em 720 atletas de elite, em estudo britânico. Em outra avaliação com 500 atletas americanos, nenhum participante apresentou espessura > 14 mm.
Apesar de incomum, o remodelamento induzido pela atividade física pode levar a uma espessura de parede do VE entre 13-15 mm em atletas de alto rendimento de atividades extremamente isométricas e com superfície corpórea muito grande e em afrodescendentes. De uma forma geral, contudo, uma espessura de parede > 15 mm deve levantar a suspeita de patologia, devendo sempre implicar em uma investigação diagnóstica complementar para confirmar/descartar doença.
[CONCEITO – função diastólica] Aqui, as alterações relacionadas ao esporte, levam a um estado de preservação, ou até melhora, da função diastólica do VE, com pressões de enchimento do átrio esquerdo (AE) normais.Atletas do Endurance com hipertrofia excêntrica do VE tipicamente apresentam índices supranormais de função diastólica quando em repouso. Já os atletas de força com hipertrofia concêntrica podem demonstrar diminuição leve dos parâmetros de avaliação, mas ainda com função diastólica normal.
Padrões anormais de fluxo e alterações precoces da função diastólica deve levar a suspeita de alteração patológica em atletas jovens ou em atletas mais velhos que não apresentem nenhuma condição subjacente que possa justificar tal alteração (por exemplo, hipertensão arterial).
[ CONCEITO – Fração de Ejeção] A fração de ejeção (FE) habitualmente se mantém preservada, independente do grau de dilatação do VE ou do aumento da espessura da parede. Contudo, é possível observar em atletas de Endurance, com dilatações mais significativas do VE, uma FE levemente reduzida (lembrem-se: esses pacientes apresentam um volume sistólico ejetado maior – pela dilatação cavitaria, o que manterá o débito cardíaco).Quando a análise da função ventricular esquerda é feita a partir de métodos mais avançados, como pela técnica de speckle-tracking, a função sistólica do VE é normal, mesmo se a FE esteja levemente alterada.
[ CONCEITO – Alterações do ventrículo direito] O remodelamento cardíaco induzido pela atividade física não se restringe apenas ao VE. Exercícios de endurance requerem tanto dilatação do VE quanto do ventrículo direito (VD) para que possam suportar uma maior quantidade de sangue (pré carga). Nesse contexto, se observa um aumento leve a moderado do VD, sem hipertrofia significativa.Em um estudo com 102 atletas de Endurance, o diâmetros do VD foram maiores que o “normal” em metade dos pacientes, inclusive 28% destes apresentaram diâmetro de via de saída do VD preenchendo critério diagnóstico para displasia arritmogênica do VD. Em outro estudo similar, na Itália, 15.6% dos atletas avaliados apresentaram diâmetro basal do VD > 40 mm. Ainda, é possível se observar uma redução leve da função sistólica do VD nesses pacientes.
Como sabemos, a displasia arritmogênica do VD é uma importante causa de morte súbita em atletas jovens. Diferenciar as alterações adaptativas do VD de doença é, portanto, um dos grandes desafios para quem avalia essa população específica. Um conceito que deve ficar é que, em atletas de Endurance, a dilatação do VD deve vir acompanhada da dilatação do VE. Quando isolada, a dilatação do VD deve indicar uma investigação complementar para descartar doença.
[ CONCEITO – Alterações atriais] O aumento do átrio esquerdo (AE) é comum nos atletas, sobretudo nos de endurance. Comparado com sedentários, o diâmetro do AE de atletas foi 4.6 mm maior entre praticantes de Endurance, 3.5 mm entre atletas de modalidades mistas e 2.9 mm em atletas de força. O mesmo tem sido observado na avaliação do átrio direito (AD).Como observado, a avaliação do coração de atleta é extremamente complexa e, aqui, devemos ter em mente uma avaliação muito mais individualizada, em que valores de referência perdem espaço, enquanto que as variáveis modalidade esportiva, intensidade de treino, doenças associadas e uso de substâncias ergogênicas influenciam de forma muito mais substancial para uma análise correta desses corações.
Diferenciar adaptação de doença sempre será o grande desafio. Para este cenário, temos a chamada “zona cinzenta”, em que apenas com avaliação obtida a partir de recursos avançados poderá diferenciar o remodelamento fisiológico do atleta de doenças que possam trazer risco à vida destas pessoas.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.
Excelente, Caio! Um ótimo texto atualizado sobre tema tão importante, que não se aplica apenas aos atletas de alta performance, senão aos atletas amadores de academia.
Excelente artigo. Apresentou importante atualização dos conceitos no binômio coração patológico/coração de atleta. Parabéns caríssimo colega Caio Guedes.
Excelente artigo! Bem completo e interessante