Ecocardiografia do Esporte: zona cinzenta

O remodelamento cardíaco induzido pelo esforço físico, em alguns casos, pode compartilhar achados ecocardiográficos que também estão presentes em condições patológicas. Diferenciar “coração do atleta” de condições que aumentem o risco de morte súbita ou que estão associadas a eventos adversos nos atletas de alto rendimento é o grande desafio para aqueles que atuam nesse área.

Este cenário é denominado de “zona cinzenta” e podemos, de forma didática, separar 4 variantes que comumente levam à dúvidas diagnósticas: (1) hipertrofia ventricular esquerda, (2) dilatação do ventrículo esquerdo, (3) dilatação do ventrículo direito e (4) trabeculação excessiva.

Hipertrofia Ventricular Esquerda: aumento leve a moderado da espessura da parede ventricular esquerda pode ser um achado comum entre atletas de alto rendimento e também em diferentes patologias, incluindo miocardiopatia hipertrófica, cardiopatia hipertensiva, doenças infiltrativas e hipertrofia ventricular secundária à doença valvar mitral ou aórtica.

Adaptado de Baggish et al, Journal of the American Society of Echocardiography May 2020

O espessamento da parede do ventrículo esquerdo (VE) atribuído ao remodelamento induzido pela atividade física é, tipicamente, de grau leve, com valores variando entre 11-13 mm (até 15 mm em atletas negros).

A análise deste achado deve ser iniciada levando-se em conta a modalidade esportiva praticada pelo paciente (ou seja, o achado tem que ser compatível com o tipo de treinamento), sendo mais comum entre os praticantes de modalidade com treino de força (isométrico). Nos atletas de endurance, por exemplo, pode até haver aumento da espessura do VE desde que acompanhado de dilatação ventricular esquerda.

Dilatação ventricular esquerda, função diastólica normal* (ou até supernormal), hipertrofia simétrica com apenas pequena variação segmentar, função sistólica preservada (ou levemente reduzida) estimada pela fração de ejeção e strain global longitudinal do VE normal falam a favor do espectro fisiológico.

*Se, por um lado, a presença de disfunção diastólica no atleta é considerado um achado patológico, a presença de função diastólica normal, por si, não exclui miocardiopatia hipertrófica.

Por outro lado, hipertrofia isolada, simétrica ou focal, com disfunção diastólica e/ou strain do VE alterado, associado (ou não) à presença de outras alterações estruturais (incluindo folheto da valva mitral alongado, implantação anômala de músculo papilar e recessos endocárdicos) devem nos fazer pensar em condições patológicas.

Aqui vale uma observação: a técnica ecocardiográfica para as medidas das paredes do VE devem ser respeitadas de forma rigorosa. Pode até parecer uma bobagem, mas, conversando com um colega que atua na área esportiva, não é incomum pacientes chegarem até ele com diagnóstico de miocardiopatia hipertrófica, mas na verdade tiveram as medidas do septo e parede posterior superestimadas por erro técnico.

Todos os atletas com hipertrofia do VE de etiologia duvidosa devem realizar ressonância magnética cardíaca: a hipertrofia induzida pela atividade física resulta pelo aumento celular dos miócitos, com mínima quantidade de fibrose. Por tanto, a presença de fibrose intersticial ou realce tardio é altamente sugestiva de padrão patológico.

Como a fração de ejeção, nestes pacientes, pode estar levemente reduzida sem que isso signifique doença (lembrem que o coração do atleta é mais eficiente, ou seja entrega débito cardíaco adequado trabalhando menos), a análise da função ventricular pelo speckle-tracking é parte fundamental do exame. O strain global longitudinal (SGL) do atleta pode variar entre 16-22%, portanto valores iguais ou inferiores a 15% devem ser considerados como anormais.

Dilatação do Ventrículo Esquerdo: a dilatação do VE também é um achado frequente em atletas de endurance. O diagnóstico diferencial deve ser feito com miocardiopatia idiopática ou familiar, miocardiopatia alcoólica, taquicardiomiopatia, miocardite regurgitação mitral ou aórtica.

Adaptado de Baggish et al, Journal of the American Society of Echocardiography May 2020

O grau (magnitude) de dilatação não deve ser levado em conta para diferenciar remodelamento induzido de condições patológicas. O que deve se ter em mente é que a dilatação do VE deve sempre estar associada a dilatação de outras câmaras cardíacas, com função sistólica do ventrículo direito (VD) normal, função diastólica normal (ou supernormal), strain do VE dentro da normalidade.

Nos pacientes em que há uma leve redução da fração de ejeção (50-45% pelo método de Simpson) é esperado que haja um volume sistólico normal.

O padrão patológico habitualmente se associa a disfunção diastólica, alteração da contratilidade segmentar, SGL do VE < ou igual a 15% ou reserva contrátil reduzida durante teste de esforço.

Dilatação do Ventrículo Direito: a dilatação do VD atribuída à pratica esportiva de alta intensidade pode ser um achado comum em atletas de endurance. Condições como miocardiopatia secundária à agentes tóxicos (cocaína, por exemplo), hipertensão pulmonar (primária ou secundária) e doenças congênitas são situações que podem levar estes pacientes para a dita zona cinzenta.

Adaptado de Baggish et al, Journal of the American Society of Echocardiography May 2020

Contudo, aqui, temos que destacar que o principal diagnóstico diferencial é a displasia arritmogênica do VD, pois se trata de uma importante causa de morte súbita entre atletas de alto rendimento.

A e B – dilatação de VD como resposta adaptativa; C e D – displasia arritmogênica do VD (Baggish et al, Journal of the American Society of Echocardiography May 2020)

A dilatação fisiológica do VD deve vir acompanhada da dilatação do VE, função sistólica preservada ou (no máximo) levemente reduzida, sem alteração da contratilidade segmentar e na ausência de alterações estruturais do VD (aneurismas, afilamento focal da parede ventricular).

VD Adaptado (Baggish et al, Journal of the American Society of Echocardiography May 2020)
Displasia arritmogênica do VD (Baggish et al, Journal of the American Society of Echocardiography May 2020)

Sempre que houver dúvidas, a ressonância cardíaca deve ser utilizada como ferramenta auxiliar tendo em vista sua superioridade, em relação à ecocardiografia, na caracterização da anatomia ventricular direita.

Nos casos em que há redução leve da função sistólica do VD é esperado que haja reserva contrátil durante testes de esforço.

Trabeculação Excessiva: aqui já fizemos uma postagem específica sobre esse tópico, mas, de forma geral, devemos lembrar que este é um achado comum entre indivíduos com alta carga de treino (resultado de uma pré carga aumentada). Quando associado à função sistólica do VE preservada, padrão diastólico normal e ausência de hipertrofia ventricular fala a favor de adaptação.

Adaptado de Baggish et al, Journal of the American Society of Echocardiography May 2020

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Daniella Rocha de Sousa

Excelente!!!

ANA AECIA ALEXANDRINO DE OLIVEIRA

excelente!

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