Como já enfatizado anteriormente, a avaliação ecocardiográfica de indivíduos ativamente treinados (esportistas em geral e atletas de alta performance) deve utilizar recursos avançados para um correto entendimento da mecânica cardíaca nestes grupos diferenciando as adaptações ao treinamento (coração do atleta) de condições patológicas.
A avaliação funcional do átrio esquerdo (AE) pela técnica do strain é um aspecto crucial na análise da eficiência atrial, especialmente em indivíduos com alta carga de treino. É importante pra isso conhecer todos os componentes da análise atrial esquerda.
Strain do Átrio Esquerdo: conceitos básicos. Vamos também lembrar as funções do AE durante as diferentes fases do ciclo cardíaco:
(1) Reservatório: capacidade de acomodar o fluxo sanguíneo proveniente das veias pulmonares durante a sístole ventricular, levando a distensão da cavidade atrial. O strain nesta fase é tipicamente positivo e está intimamente relacionado a performance e eficiência diastólica;
(2) Conduto: capacidade de escoar o sangue armazenado para o ventrículo esquerdo (VE) durante o início da diástole (representado pela onda E do fluxo transmitral ao Doppler pulsátil), responsável pela maior parte do enchimento ventricular (fase de enchimento rápido);
(3) Bomba: período de contração atrial no final da diástole (representado pela onda A do fluxo transmitral pelo Doppler pulsátil), responsável por cerca de 30% do enchimento ventricular.
Certamente você já deve ter visto alguma matéria em destaque afirmando que atletas têm um risco maior de arritmias cardíacas. Vamos entender melhor de onde vem esse achado.
Não é novidade que o volume indexado do AE de atletas é maior quando comparado com indivíduos não treinados. Em uma metanálise (Clinical Cardiology. 2019;42:579–587), o volume do AE indexado médio de atletas variou de 24.6 ± 7.3 mL/m2 a 40.0 ± 5.0 mL/m2 enquanto que o grupo controle (não atletas) apresentou valores menores, variando de 15.8 ± 4.5 mL/m2 a 25.0 ± 2.0 mL/m2.
Quando partimos para a avaliação pelo strain, foram observados os seguintes parâmetros:
- AESr – avalia a função reservatório (Strain AE fase de reservatório);
- AEScd – avalia a função de conduto (Strain AE fase de conduto);
- AESct – avalia a função contrátil (Strain AE fase de contração).
Embora menos utilizada, também há a taxa de velocidade da deformação ou strain rate, descrita como AESRr (pico strain rate na fase reservatório), AESRcd (pico de strain rate na fase de conduto) e AESRct (pico de strain rate durante contração atrial). Ficando esta evolução do tema para uma nova etapa no nosso Blog.
Em uma metánalise (Clinical Cardiology. 2019;42:579–587) que avaliou dados da função atrial de atletas, o valor médio do strain de reservatório em atletas foi de 37% ± 1.2% (CI: 34.6%‐39.5%) e em não atletas, de 38.5% ± 1.5% (CI: 35.3%‐41.2%).
A média do strain em sua fase de contração foi de 12.4% ± 0.4% em atletas e de 13.6% ± 0.7% em não atletas, não havendo diferença estatisticamente significativa. Também não foi observada diferença significativa nos valores da velocidade do strain rate em fase de reservatório (−0.16 CI: −0.43 /+0.11, P = 0.24), contudo foram observados valores menores de strain rate em sua fase de contração (−1.56 ± 0.08, CI: ‐1.70/−1.40 vs 1.74 ± 0.09, CI: −1.93/−1.56) nos atletas.
Vamos entender esses achados!!!
A metanálise com 9 diferentes estudos, incluindo 403 atletas de elite e comparando com 297 controles (não atletas), demonstrou que (1) atletas de elite tem um volume atrial esquerdo maior que a população geral, (2) AEsr, que reflete a função de reservatório do AE, se mostrou reduzido nos atletas, porém com significância estatística limítrofe, (3) o AESct também se mostrou reduzidos nos atletas
O aumento do volume do átrio esquerdo é visto como uma adaptação fisiológica em indivíduos treinados (pelo aumento da pré carga): há um aumento gradual do volume, sobretudo nos praticantes de endurance, durante o período de treinamento (temporada), com posterior redução volumétrica em caso de destreino.
Dessa forma, o aumento do volume do AE não deve ser entendido como um marcador de disfunção atrial, uma vez que a avaliação através do strain habitualmente mostra função atrial preservada, com uma redução de todos os componentes (reservatório , bomba, conduto), principalmente quando associada a uma boa eficiência de outras cavidades (SLGVE , SLVD parede livre) . A atividade física reserva adaptações e mudanças na mecânica de todas as cavidades cardíacas. Não podemos esquecer disso!
O que pode ser observado, contudo, é que após um período de treinamento intenso (lembrem-se de que o período, dentro do planejamento de treinamento, em que a avaliação está sendo realizada é importante), há uma redução da função contrátil do AE e, por vezes, da função de reservatório (o que ocorre é uma melhora da eficiência , em que o escoamento de sangue para o VE ocorre de forma contínua e simples, não sendo necessário o complemento do componente contrátil).
Um valor reduzido do strain do AE em atletas quando comparado com a população geral (37% vs 39.4% – resultado obtido na amostragem), pode ser justificado pela menor função de bomba (12.4% vs 17.4%), indicando um mecanismo adaptativo e não patológico.
Alguns estudos correlacionaram a redução da função de bomba a um risco maior de fibrilação atrial (FA), o que pode explicar, por exemplo, uma incidência mais elevada de arritmias atriais entre atletas quando em idades mais avançadas. Alguns autores (Sorensen et al, Eur Heart J 2022; 23:137 – Trivedi et al, Eur Heart J Cardiovasc Imaging 2020; 0:1) questionam o mecanismo de produção destas arritmias, sugerindo que atletas idosos apresentam miopatia atrial devido ao aumento do débito cardíaco, mas com o genótipo de FA. A dilatação atrial causada pelo remodelamento adaptativo expõe o fenótipo da arritmia.
É importante ressaltar, porém, que não temos estudos com destreinamento desses grupos, o que poderia identificar se a sobrecarga de treinos e suas adaptações seriam fatores determinantes nestas condições patológicas, tendo em vista que a diminuição dos padrões de deformação atrial esquerda são comumente encontrados na melhora da eficiência cardíaca.
Devemos continuar a evoluir na análise destes grupos, já que a população vem envelhecendo e praticando mais atividade física. Entender a associação das condições patológicas pregressas e a resposta à atividade física, seja em esportes com maiores componentes isotônico ou isométricos, é uma desafio constante .
Exemplo de Strain do AE em atleta de 63 anos praticante de modalidade de endurance (percebam os valores de reservatório e de função de bomba reduzidos).
NOTA: texto elaborado com a colaboração de Dr. Castillo e Dr. João Giffoni.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.