O coração de atleta é a definição de um amplo espectro de alterações cardíacas resultantes de mecanismos de adaptação induzidos pela atividade física de alta intensidade.
Um dos pilares da avaliação de atletas é entender os mecanismos envolvidos nos diferentes tipos de treinamento. Vamos então analisar as diferenças adaptativas, encontradas através da análise pelo speckle tracking, entre corredores (endurance) e fisiculturistas (força).
O estudo avaliou 24 atletas de endurance (maratonistas e ultramaratonistas), 14 fisiculturistas e 15 indivíduos saudáveis, porém sedentários.
Nos grupos de atletas (endurance x força), os indivíduos analisados tinham pelo menos 5 anos de treino regular, com pelo menos 11 meses de treinamento ao ano.
Entre os maratonistas, a média de treino foi de 20.0 ± 1.4 horas/semana por 7.9 ± 1.4 anos, com pelo menos 50 km/semana, além de participação em competições profissionais.
Já entre os fisiculturistas, a média foi de pelo menos 5 treinos/semana, enquanto que o grupo controle (indivíduos saudáveis e sedentários) a prática de atividade física não ultrapassou a frequência de 3x/semana.
Os critérios de exclusão foram (1) qualquer doença aguda ou crônica, (2) uso de medicações ou substâncias ilícitas (incluindo esteroides anabolizantes), ou (3) suspeita de qualquer condição cardiovascular pelo eletrocardiograma, medida da pressão arterial, ecocardiograma e exames laboratoriais.
Após realização de ecocardiograma, pacientes com (1) alteração da contratilidade segmentar, (2) disfunção valvar pelo menos moderada ou (3) disfunção diastólica seriam utilizados como critérios de exclusão, contudo nenhum participante apresentou alguma dessas alterações.
A espessura diastólica da paredes do ventrículo esquerdo (VE) foi similar entre os atletas, contudo a massa ventricular esquerda foi maior nos fisiculturistas (R vs. B vs. N: 198 ± 52 vs. 224 ± 69 vs. 186 ± 30 g, p < 0.05)*.
* R – Runners; B – bodybuilders; N – volunteers.
Ambos os grupos de atletas apresentaram volumes diastólicos finais maiores, porém sem diferenças na avaliação da função sistólica do VE pela fração de ejeção ou pela avaliação do Doppler tissular no anel mitral lateral (como já esperado!) – Fração de ejeção: 55 ± 9 vs. 60 ± 6 vs. 59 ± 5%; mitral lateral S’ velocity: 10.7 ± 0.6 vs. 10.6 ± 0.4 vs. 11.0 ± 0.8 cm/s.
A análise pelo técnica de speckle tracking, por sua vez, mostrou padrões distintos entre os grupos.
Enquanto que o strain radial foi similar, o strain longitudinal foi menor entre os maratonistas e o strain circunferencial foi reduzido no grupo dos fisiculturistas comparado com os outros dois grupos: GLS: -19.4 ± 3.4 vs. -23.3 ± 2.1 vs. -24.1 ± 3.0; GCS: -26.6 ± 3.8 vs. -22.4 ± 4.3 vs. -26.4 ± 2.7%, p < 0.05*.
*GLS – global longitudinal strain; GCS – global circunferencial strain.
Houve correlação significativa, nos maratonistas, entre o SGL e volume diastólico final do VE (r = 0.46; p < 0.05), índice de volume diastólico final (r = 0.43; p < 0.05) e superfície corporal (r = 0.49; p < 0.05).
Nos fisiculturistas, o strain circunferencial teve correlação próxima com a massa ventricular esquerda (r = 0.61; p < 0.01), índice de massa (r = 0.46; p < 0.05) e pressão arterial sistólica (r = 0.42; p < 0.05).
Enquanto os parâmetros ecocardiográficos convencionais (mais uma vez) não mostraram diferenças entre atletas de duas modalidades distintas de treinamento, o emprego de técnica avançada demonstrou que de fato existem diferenças no padrão de adaptação desses indivíduos.
O strain longitudinal, como sabemos, analisa o encurtamento do ventrículo esquerdo ao longo do eixo longitudinal (por isso tem valor negativo), sendo um parâmetro útil e sensível na avaliação de várias condições patológicas, como isquemia miocárdica. Já o strain circunferencial avalia esse encurtamento no eixo curto, dando informações sobre a direção de deformação que gera ejeção (rotação).
Nos casos dos maratonistas, pelo padrão de adaptação excêntrica, o SGL reduzido se justifica pelo aumento da cavidade ventricular esquerda e uma menor necessidade de deformação para manter o débito cardíaco durante o repouso (cavidade maior –> maior volume diastólico –> menor necessidade de deformação = eficiência mantida!).
Nos fisiculturistas, o strain circunferencial menor (lembrem-se que a medida é negativa, portanto um valor menor significa uma rotação maior) se correlaciona com uma massa ventricular esquerda maior (cavidade menor –> menor volume –> maior necessidade de rotação para manter débito cardíaco = eficiência mantida!).
Mais um estudo comprovando tudo aquilo que estamos apresentando por aqui na sessão de ecocardiografia do esporte. A avaliação destes indivíduos deve utilizar obrigatoriamente técnicas avançados, caso contrário a chance de erro na interpretação dos achados ecocardiográficos é quase certa! Já dizia nosso caro amigo Bart Simpson, a avaliação convencional não é suficiente!
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.
Ótima descrição do trabalho e dos achados.
A dúvida: qual a implicação clínica dessa diferença de padrão do strain a depender da modalidade?
À luz do conhecimento atual devemos iniciar medicação? Recomendar redução da carga de treino? Realizar algum exame adicional?
Olá, Natali. O reconhecimento dos diferentes padrões de adaptação é importante para que, quando estivermos diante de possibilidade doença, possamos ter segurança para diferenciar o que é patológico e o que é adaptação (coração de atleta). Esse é um cenário muito comum para quem trabalha com atletas e é conhecido como “zona cinzenta”. Na ausência de doença, essas alterações devem ser consideradas como uma resposta à alta carga de treino e não necessitam de nenhum tipo de tratamento.