Já discutimos por aqui as variáveis relacionadas ao treinamento de alta intensidade que impactam de forma direta a forma como o coração irá se adaptar ao esforço.
(1) Idade, (2) gênero, (3) etnia, (4) duração de treinamento, (5) carga de esforço, (6) modalidade esportiva, (7) doenças associadas e (8) uso de substâncias exógenas são informações cruciais para uma correta avaliação de atletas de alto rendimento.
Levando em consideração que a carga e a duração de treinos são fatores que influenciam na adaptação cardíaca ao esforço, é fácil entender, portanto, que a análise ecocardiográfica de um atleta de alto rendimento (aqui estamos falando do universo de alta perfomance) pode variar de acordo com os diferentes períodos de uma mesma temporada.
Vamos demonstrar?!
Uma publicação britânica demonstrou avaliou atletas da liga profissional de Rugby (modalidade mista: componentes estático e dinâmico moderados) em períodos diferentes durante uma temporada.
Foram avaliados 20 atletas da liga profissional, com idade de 23 ± 4 (variando de 18–31 anos), com histórico de treinamento de alta intensidade há 13.3 ± 3.6 anos, durante as seguintes fases da temporada: final da pré temporada (ENDPRE), meio da temporada (MIDCOMP), final da temporada (ENDCOMP) e final das férias (ENDOFF).
Durante a avaliação não foram observadas alterações significativas da frequência cardíaca (FC) e pressão arterial (P > 0.05). Em relação às cargas de treino, o período ENDPRE foi o de maior intensidade de esforço comparado com os demais períodos (P < 0.001), sem diferença entre MIDCOMP e ENDCOMP.
Todos os eletrocardiogramas foram considerados normais (para atletas de alto rendimento), com documentação de bloqueios atrioventriculares de primeiro grau, bradicardia sinusal, arritmia sinusal, padrão de repolarização precoce e aumento da voltagem dos complexos QRS (tanto para sobrecarga ventricular esquerda, quanto para sobrecarga ventricular direita).
Os parâmetros estruturais ecocardiográficos da avaliação convencional bidimensional também não sofreram variações significativas durante a temporada (P > 0.05), com exceção da velocidade da onda A do fluxo transmitral, cujos valores foram menores no período final da temporada (ENDCOMP) quando comparado com o período de férias (ENDOFF) – P = 0.028, refletindo o impacto do destreino na função atrial.
A função ventricular esquerda, avaliada por diferentes parâmetros, também não sofreu alteração (P > 0.05).
A torção apical e o twist, contudo, foram maiores na ENDPRE (período de maior carga de treinamento) comparado com os demais períodos (MIDCOMP – P = 0.004 e P = 0.027 / ENDCOMP – P = 0.002 e P = 0.0009 / ENDOFF – P = 0.019 e P = 0.017).
A avaliação do ventrículo direito e dos átrios também não demonstrou alterações durante os períodos avaliados.
Para atletas dessa modalidade (é sempre importante considerar o padrão de treinamento de cada modalidade), o aumento da rotação apical e do twist, observados durante o período de maior carga de treinamento da temporada, pode ser justificado justamente pelo aumento agudo da intensidade e carga de treinos, ocorrendo justamente após o período de descanso (ENDOFF), documentando que esses atletas estavam em fase de destreino (já é bem documentado que em atletas cronicamente treinados – endurance, principalmente – a rotação apical e o twist tem valores reduzidos !!!)
“A ponta diz muito sobre a condição de treinamento atual do atleta”
Por outro lado, estudos com atletas de outras modalidades mostram resultados diferentes. Em análise, por exemplo, de jogadores de futebol, volei e basquete, alterações morfológicas do ventrículo esquerdo foram observadas após um programa de 18 semanas de treinamentos.
Em outro estudo prospectivo longitudinal, com atletas competitivos (endurance – 40 / força – 24), com avaliação ecocardiográfica no início da temporada de treinamentos e 90 dias após, demonstrou que:
1- A massa ventricular esquerda aumentou 11% nos atletas de endurance (116 ± 18 vs. 130 ± 19 g/m2; P < 0.001) e 12% nos atletas de força (115 ± 14 vs. 132 ± 11 g/m2; P < 0.001; P value for the compared Δ = NS);
2- Atletas de endurance apresentaram dilatação do ventrículo esquerdo (end-diastolic volume: 66.6 ± 10.0 vs. 74.7 ± 9.8 ml/m2, Δ = 8.0 ± 4.2 ml/m2; P < 0.001), aumento dos parâmetros de avaliação da função diastólica (lateral E′: 10.9 ± 0.8 vs. 12.4 ± 0.9 cm/s, P < 0.001) e aumento biatrial;
3- Atletas de força apresentaram hipertrofia ventricular esquerda (posterior wall: 4.5 ± 0.5 vs. 5.2 ± 0.5 mm/m2, P < 0.001) e diminuição dos parâmetros de avaliação da função diastólica (E′ basal lateral LV: 11.6 ± 1.3 vs. 10.2 ± 1.4 cm/s, P < 0.001);
4- Atletas de endurance apresentaram dilatação associada do ventrículo direito (end-diastolic area: 1,460 ± 220 vs. 1,650 ± 200 mm/m2, P < 0.001) associado a melhora dos parâmetros de diástole (E′ basal RV: 10.3 ± 1.5 vs. 11.4 ± 1.7 cm/s, P < 0.001), enquanto que atletas de força não apresentaram alterações nos parâmetros de avaliação do ventrículo direito.
Moral da história: não existe receita de bolo na avaliação de atletas!!!! Cada caso deve ser individualizado e as variáveis citadas no início da postagem PRECISAM ser entendidas!
Então aqui vai mais um (importante) conceito da ecocardiografia do esporte: entendendo as variáveis (1) modalidade de treino, (2) carga de treino, (3) período de treino, é possível, através da avaliação dos achados do exame somados à planilha de treinamento e objetivo final, entender em qual momento se encontra o atleta, podendo inclusive determinar mudanças na estratégia de treinamento.
Por exemplo: um atleta de MMA (modalidade mista) que vem demonstrando desgaste excessivo durante suas lutas (cansa rápido) e com ecocardiograma mostrando uma torção apical aumentada, pode se beneficiar de uma maior carga de treino aeróbico durante sua preparação (entenda que, num universo de alto rendimento, esses detalhes podem determinar um ganho significativo de perfomance – é aquele lutador que cansava no segundo round de uma luta e passa a performar melhor até o final da luta!)
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.