Ecocardiografia com Estresse Físico: e o trabalho miocárdico?

A ecocardiografia de estresse é uma poderosa ferramenta para estratificar o risco de pacientes com doença coronariana conhecida ou suspeitada. Uma prova negativa por motilidade está relacionada a uma baixa taxa de eventos futuros. No entanto, as principais limitações do método estão relacionadas à subjetividade na avaliação da contratilidade segmentar e a variabilidade interobservador. Será que as novas tecnologias têm papel na ecocardiografia de estresse?

Um interessante trabalho neozelandês, publicado no JASE em 2020, avaliou o uso do trabalho miocárdico durante o ecocardiograma de estresse físico. O objetivo dos autores era determinar quais eram as respostas normal e isquêmica durante o exercício.

J Am Soc Echocardiogr 2020;33:1191-200

Trata-se de um estudo retrospectivo, envolvendo o banco de dados de três instituições, entre os anos de 2015 a 2019. Os pacientes selecionados foram submetidos a ecocardiograma de estresse físico em esteira (protocolo de Bruce). 

Os critérios de inclusão eram a pesquisa de isquemia miocárdica e a possibilidade técnica de determinar o trabalho miocárdico*. 

Adaptado de J Am Soc Echocardiogr 2020;33:1191-200

Já os critérios de exclusão foram (1) anormalidade na função ventricular esquerda em repouso (fração de ejeção inferior a 50% por Simpson ou alteração de contratilidade segmentar), (2) cardiomiopatia conhecida, (3) risco de cardiomiopatia subclínica (insuficiência renal em estágio final, cirurgia de revascularização miocárdica ou infarto prévio), (4) qualidade de imagem inadequada para análise com speckle tracking e a (5) incapacidade de alcançar a frequência cardíaca submáxima prevista para a idade

Ao total foram selecionados apenas 60 ecocardiogramas dos 312 exames disponíveis no banco de dados, sendo 40 exames normais e 20 positivos para isquemia miocárdica. Nenhum dos pacientes com ecoestresse normal foi submetido a cinecoronariografia ou apresentou novo diagnóstico de isquemia e/ou cardiomiopatia durante o seguimento (média de 24 meses).  

Adaptado de J Am Soc Echocardiogr 2020;33:1191-200

percebe-se que as três instituições realizam muito pouco ecocardiograma de estresse físico. Em quatro anos, cada centro contribuiu com pouco mais de cem exames. Os critérios de inclusão foram bastante condizentes e não parecem ter sido os responsáveis pela pequena amostra deste estudo.

Exceto pela etnia, as demais características da população estudada não apresentavam diferenças estatisticamente significativa.

J Am Soc Echocardiogr 2020;33:1191-200

A resposta normal observada foi o incremento do índice de trabalho miocárdico (MWI), tanto global quanto regional, e a manutenção da eficiência (maior igual a 96%).  Dos segmentos basais até médio-apicais houve um  incremento da resposta ao esforço (41%, 50%, 61%, respectivamente, P<0,001) produzindo um gradiente basal-apical mais proeminente no  pico do exercício (76%).

O aumento do trabalho miocárdico durante o exercício foi mais relacionado mais ao aumento da pressão arterial  (r = 0,67, P < 0,001) do que ao incremento do strain (r = 0,31, P<0,01).

J Am Soc Echocardiogr 2020;33:1191-200
J Am Soc Echocardiogr 2020;33:1191-200

Todos os pacientes com ecocardiograma de estresse positivo foram submetidos a angiografia confirmando a presença de estenose coronária significativa.

A resposta isqêmica foi caracterizada por ausência do incremento do strain longitudinal global e do MWI durante o esforço em comparação com o repouso. Os segmentos supridos pela coronária estenosada demonstraram redução do trabalho miocárdico durante o esforço. 

Subjetivamente o trabalho miocárdico demarcava mais segmentos doentes do que a avaliação da motilidade parietal tradicional. Em alguns casos, isso refletia a presença doença coronária, enquanto em outros esses segmentos não apresentavam evidência angiográfica de doença.

A eficiência diminuiu significativamente durante o exercício. O trabalho construtivo não modificou enquanto o trabalho desperdiçado aumentou expressivamente (+107%,  P=0,001). Comparado com pacientes normais, o aumento do trabalho construtivo foi menor, enquanto o aumento do trabalho desperdiçado não foi diferente significativamente.

Isto sugere que a diferença entre a resposta normal e a isquêmica é mediada muito mais  pelo incremento reduzido do trabalho construtivo do que pelo aumento do trabalho desperdiçado.

J Am Soc Echocardiogr 2020;33:1191-200

Figura 2. Resposta normal e isquêmica do MW ao exercício. Observem o incremento do MW no sentido base ápice no estudo normal. No paciente com resposta isquêmica observa-se ausência do incremento do MW, perda do gradiente ascendente e redução do trabalho nas paredes inferior, anterior, septo e ápice. Coronariografia evidenciou lesões importantes nas artérias descendente anterior e coronária direita.

J Am Soc Echocardiogr 2020;33:1191-200

A mudança percentual no MWI regional e global em comparação com a avaliação visual da motilidade parietal teve uma área sob a curva de > 0,90. Os pontos de corte do MWI previram mais isquemia com precisão nos segmentos apicais em comparação com os segmentos basais (Estatística J de Youden 0,8 vs 0,74).

O ponto de corte de um aumento de 25% no MWI teve uma sensibilidade de 90% e especificidade de 85% dentro desta série.   Coeficientes de correlação intraclasse para intraobservador e interobservador a confiabilidade foi de 0,93 e 0,75, respectivamente (ambas P < 0,001).

J Am Soc Echocardiogr 2020;33:1191-200

NOTA PESSOAL: o estudo é bastante interessante, porém devemos considerar alguns pontos. O N é muito pequeno. Provavelmente o ecocardiograma de estresse não seja a modalidade de escolha para investigação de dor torácica nestes três centros da Nova Zelândia. Entendo que o objetivo era avaliar pacientes sem evidência de doença em repouso e/ou risco de cardiomiopatia para determinar a resposta normal e isquêmica. No entanto sessenta pacientes em uma análise retrospectiva de quatro anos é muito pouco.

Outro dado intrigante é que todos os vinte pacientes com ecocardiograma de estresse positivo para isquemia apresentavam lesões importantes ao cateterismo cardíaco. Lembrando que a sensibilidade e especificidade do ecoestresse físico é por volta de 80 a 85% respectivamente, será que não ocorreu viés de seleção?

Por outro lado, os demais pacientes com estudo negativo não apresentaram eventos futuros durante o seguimento. Isto reforça o excelente valor prognóstico da ecocardiografia de estresse.

Em relação ao uso do trabalho miocárdico durante o esforço vemos mais pontos positivos que negativos. O conceito do incremento do trabalho construtivo regionalmente, no sentido base ápice, é coincidente com estudos anteriores de strain longitudinal.

No entanto, o strain apical aumenta proporcionalmente mais que o basal ao esforço. Além da explicação citada pelo autor (proximidade do ânulo mitral e esqueleto fibroso do coração com os segmentos basais, restringindo a mobilidade e resposta ao esforço) ressalto também a menor resolução lateral dos segmentos basais e a influência das altas frequências cardíacas ao estresse.

Apesar do trabalho miocárdico ser derivado do strain, esta limitação não foi observada, pois o mesmo aumentou significativamente em todos os segmentos nos estudos normais, demonstrando maior sensibilidade que o strain longitudinal.

Nos pacientes com isquemia, além de ausência de incremento do MWI, a redução regional nos segmentos supridos pela coronária doente pareceu ser maior do que nos segmentos com alteração de motilidade parietal ao estudo convencional. Compartilhamos com impressão semelhante, e nos parece que o trabalho miocárdico demarca melhor a área isquêmica do que o strain longitudinal.

A isquemia foi melhor identificada na região apical provavelmente por vários motivos e não apenas por uma maior alteração no MW como os autores afirmaram. Um dos motivos é a presença de lesão em artéria descendente anterior que rotineiramente ocasiona isquemia apical. Dr Marwick comparou o uso do strain por speckle tracking (STE) e por Doppler tissular (TVI) durante o ecocardiograma com estresse farmacológico e demonstrou que o strain por STE apresentava acurácia similar ao strain por TVI na detecção de isquemia na circulação anterior, mas não na circulação posterior.

Como o ápex está mais próximo do transdutor que os segmentos basais, a resolução lateral é melhor e, consequentemente, o tracking por strain por STE também é mais fidedigno.

Além disso, quando falamos de ecoestresse físico devemos sempre levar em consideração altas frequências cardíacas e um exame tecnicamente mais difícil na obtenção das imagens.

A análise de curva ROC com valor de área sob a curva > 0,9 indica realmente excelente acurácia diagnóstica para detecção de isquemia. Contudo o N é muito pequeno para extrapolarmos para a vida real. Obviamente que necessitamos de mais estudos, mas tiramos lições importantes deste estudo.

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ROGER A. COSTA

Como sempre excelente Dr Issam !!!

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