
Cocaína é a causa mais comum de atendimento em pronto socorro por abuso de substância ilícita no mundo, sendo a maioria desses atendimentos (em torno de 56%) por queixas cardiovasculares. Conhecer os efeitos desta substância no sistema cardiovascular é, portanto, importante para nós cardiologistas.
Se imaginarmos que mais de 14 milhões de pessoas, munda à fora, fazem uso de cocaína, sendo homens com idade entre 15-64 anos a maioria destes usuários, é intuitivo entender que casos com complicações cardíacas relacionadas à dependência desta substância sejam cada vez mais frequentes.

De forma geral, o sistema cardiovascular pode ser afetado pelo uso de cocaína por diferentes mecanismos e resultando em complicações diversas, como emergência hipertensiva, dissecção de aorta, arritmias malignas, isquemia miocárdica aguda, síndrome de takotsubo e hipertensão Pulmonar.

A cocaína aumenta a demanda de O2 pelo miocárdio por elevar a frequência cardíaca e pressão arterial, ao mesmo tempo em que essa substância diminuí a oferta de O2 pela constrição coronária. Com o uso crônico, ou seja, pacientes com dependência química, há disfunção endotelial com aumento da sensibilidade dos vasos aos efeitos vasoconstritores das catecolaminas e aumento da predisposição à trombose.

https://doi.org/10.1161/CIRCULATIONAHA.110.940569
Além disso, atua diminuindo a contratilidade miocárdica pelo bloqueio dos canais de sódio e potássio no miocárdio, resultando em disfunção ventricular e aumento da pressão diastólica final do ventrículo esquerdo (VE).
A disfunção ventricular esquerda observada em usuários crônicos de cocaína também pode ocorrer durante episódio de intoxicação aguda. Em modelos animais, a intoxicação aguda levou a dilatação ventricular esquerda, diminuição da contratilidade e, por vezes, déficit segmentar (mais frequentemente observado na parede anterosseptal).
Em análise de usuários crônicos desta droga, após um período de duas semanas de abstinência, 7% (6 de 84) dos pacientes assintomáticos, com idade média de 36 anos, tinham fração de ejeção (FE) < 55%. Em outro estudo, 33 usuários de cocaína submetidos a angiografia coronária (28 por dor torácica e 4 por insuficiência cardíaca), a fração de ejeção se mostrou reduzida em 55% dos casos, sendo ≤ 30% em 18%. Destes, 04 indivíduos tinham FE <30% associado a hipocinesia difusa das paredes do VE.
Em registro com 83 hospitais nos EUA, o uso simultâneo de cocaína com metanfetaminas foi relatado em 594 dos 11.258 pacientes (5.3%) admitidos no pronto socorro com quadro de insuficiência cardíaca (nova) descompensada. Os pacientes com uso concomitante de estimulantes foram mais propensos a apresentar ≥ 03 hospitalizações em período de 06 meses (28% x 11%) e tinham menor FEVE (média, 23% x 40%).
A cardiomiopatia induzida por cocaína pode ocorrer de forma inesperada, na ausência de “pródromos” e a duração e quantidade do uso dessa substância relacionada ao desenvolvimento da cardiomiopatia (CMP) são incertas.
Vamos, então de caso clínico.

Homem, 38 anos, com relato de dispneia em repouso de início recente (mesmo dia da admissão), com piora e intolerância ao decúbito ao longo do dia. Informa episódios semelhantes dentro dos últimos 30 dias e que, neste período, havia sido hospitalizado para tratamento de pneumonia adquirida na comunidade, recebendo alta após 03 dias.
Além da dispneia, o paciente apresentava tosse produtiva com expectação com raios de sangue, cefaleia frontal, dor torácica retroesternal e relatos de episódios febris.
Admitiu uso recorrente de cocaína, 1x/semana e em grandes quantidades, há 18 anos. A última vez que tinha feito uso da substância foi na noite anterior a admissão.
Admitido com frequência cardíaca variando entre 104-110 bpm, pressão arterial de 179 x 121 mmHg e SpO2 86-89% em cânula nasal 2L/min. Havia turgência jugular patológica, sopro sistólico (2+/6+) em foco mitral com irradiação para a região axilar, além de creptos pulmonares bilaterais e difusos.
Laboratorialmente, chamava atenção um BNP elevado (894 ng/L) e teste toxicológico positivo para cocaína. Eletrocardiograma com taquicardia sinusal, sobrecarga atrial esquerda, sobrecarga ventricular esquerda e alteração da repolarização na parede anterior.
Radiografia de tórax com aumento da área cardíaca, opacidades pulmonares bilaterais. Já a tomografia de tórax demonstrou consolidação com broncograma aéreo, opacificação em vidro fosco e derrame pleural leve bilateralmente.

http://www.biomedcentral.com/1756-0500/6/536

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Ecocardiograma mostrou mostrou dilatação do VE (diâmetro diastólico final 6.3 cm), com hipocinesia difusa das paredes e fração de ejeção de 25%, com disfunção diastólica grau III, além de refluxo mitral leve a moderado.
http://www.biomedcentral.com/1756-0500/6/536
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Iniciada terapia para insuficiência cardíaca, paciente apresentou melhora sintomática significativa e, por volta do quarto dia de tratamento, evoluiu com melhora radiológica dos achados pulmonares, apesar da persistência de creptos esparsos em bases pulmonares.
Durante internação, foi realizado cateterismo cardíaco que excluiu a possibilidade de cardiomiopatia isquêmica. Após este período, o paciente foi encaminhado para uma clínica de reabilitação e ficou aos cuidados da psiquiatria.

Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN) e em Cardiologia pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.