Em postagem anterior, já falamos aqui no blog sobre calcificação/degeneração caseosa do anel mitral (clique aqui). Trata-se de uma forma rara (0.067% da população geral) de calcificação do anel mitral, mais prevalente entre idosos com disfunção renal, sendo um diagnóstico diferencial de abscesso, tumor ou vegetação de valva mitral.
O mecanismo fisiopatológico ainda não é muito bem entendido, porém acredita-se que tenha relação com o metabolismo alterado do cálcio, haja vista a maior incidência entre pacientes renais crônicos em estágios avançados da doença.
À ecocardiografia, a calcificação caseosa tipicamente acomete o anel valvar posterior e se apresenta como uma massa com região central ecolucente (liquefeita) envolta por uma membrana hiperecogênica (calcificada).
Apesar de raro, este condição pode evoluir com fístula, disfunção valvar e embolização sistêmica, sendo essas as indicações de abordagem cirúrgica. Ainda, quando não for possível diferenciar a calcificação caseosa de uma lesão tumoral propriamente dita, a cirurgia também deve ser considerada.
Assim sendo, o paciente com calcificação caseosa do anel mitral possui um maior risco de eventos embólicos cerebrais e isso se atribui aos casos em que há formação fistulosa com embolização de debris caseosos necróticos.
Para ilustrar essa situação, trago aqui um interessante relato publicado no periódico CASE com 3 cases de calcificação caseosa do anel mitral (artigo disponível neste link):
CASO 01:
Homem, 61 anos, hipertenso e diabético, portador de doença renal crônica (DRC) em terapia substitutiva renal há 18 anos, realizou ecocardiograma de rotina com achado de uma massa móvel no anel posterior da valva mitral, com região central hipoecogênica e com halo com ecogenicidade aumentada (A), contudo no eixo curto da janela paraesternal (B), apresentava-se como uma massa homogênica, hiperecogênica, medindo cerca de 10×9 mm. Ao redor, observava-se uma estrutura filamentar móvel aderida à valva mitral e em direção ao músculo papilar (A).
O ecocardiograma transesofágico confirmou a presença desta estrutura filamentar, móvel, espessa e calcificada próxima à região P2 do folheto posterior da valva mitral. Como o paciente foi considerado de alto risco para eventos embólicos, foi, então, encaminhado para avaliação da cirurgia cardíaca para a remoção desta estrutura. O paciente foi submetido a cirurgia para ressecção desta lesão e plastia mitral.
Os achados intraoperatórios consistiram em uma massa com paredes rígidas, contendo material esbranquiçado (tipo pasta de dente) em seu interior, sugestivo de calcificação caseosa, confirmada após análise anatomopatológica. A estrutura filamentar descrita pela ecocardiografia tratava-se de uma comunicação fistulosa entre a calcificação caseosa e o ventrículo esquerdo numa fase já calcificada.
CASO 02:
Homem, 83 anos, portador de doença renal crônica e em hemodiálise há 01 ano, com ecocardiograma transtorácico de 02 anos atrás com achado compatível com calcificação caseosa do anel mitral e com outro exame realizado há 01 ano demonstrando um aumento da lesão, passando de 11 mm para 18 mm. Realizou novo exame ecocardiográfico, sendo demonstrando crescimento progressivo da calcificação, agora apresentando-se como uma massa de 20 mm de diâmetro no seu maior eixo. Além disso, foi observada uma estrutura móvel adjacente à massa, sendo aventada a possibilidade de uma fístula para o ventrículo esquerdo.
O estudo transesofágico revelou uma massa no segmento P2 do folheto posterior da valva mitral com uma estrutura móvel aderida a esta massa, além de regurgitação valvar moderada e perfuração no aparato valvar posterior.
O paciente foi submetido a cirurgia cardíaca, que confirmou a massa localizada na região P2-P3 e perfuração parcial do segmento P1, com presença de tecido móvel proveniente da calcificação caseosa. Realizado ressecção da massa e troca valvar.
CASO 03:
Homem, 73 anos, portador de hipertensão arterial sistêmica, fibrilação atrial crônico e DRC em hemodiálise há 32 anos, além de amiloidose induzida pelo tratamento dialítico. Tinha histórico de troca valvar aórtica por estenose valvar severa e revascularização miocárdica há 04 anos. Durante avaliação de rotina, foi observado uma massa medindo 16 x 19 mm na região entre a região posterior da raiz de aorta e o folheto anterior da valva mitral.
Apesar da localização atípica, a massa apresentava características compatíveis com calcificação caseosa. Exame de controle realizado 6 meses depois demonstrou crescimento da massa para 29 x 14 mm.
Por ter uma localização incomum, foi realizado uma cintilografia miocárdica com gadolínio e uma tomografia computadorizada para uma melhor caracterização da lesão. O resultado da cintilografia descartou sarcoidose em atividade e a tomografia revelou que massa se estendia da raiz de aorta até a fibrosa intervalvar mitroaórtica. Ainda, foi realizado uma angiografia coronária, sendo descartada a presença de aneurisma de artéria coronária.
Como houve crescimento progressivo da lesão e risco elevado de fistulização, o paciente foi submetido a cirurgia cardíaca, com achado transoperatório de ruptura da massa e com perfuração da fibrosa mitroaórtica, sendo realizado dupla troca valvar aórtica e mitral.
Como visto, pacientes com calcificação/degeneração caseosa do anel mitral apresentam risco maior de acidente vascular encefálico de origem cardioembólica e isto se deve, sobretudo, à presença de formação fistulosa espontânea e embolização de debris caseosos necróticos. Além da presença de fístula, pacientes com idade > 70 anos, sexo feminino e portadores de hipertensão arterial sistêmica são considerados de risco elevado para eventos embólicos e devem ser avaliados de forma individualizada para a possibilidade de ressecção cirúrgica da lesão.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.