A avaliação da função diastólica em qualquer paciente deve ser multifatorial, considerando dados como história clínica, frequência cardíaca, pressão arterial, achados ecocardiográficos bidimensionais e do estudo Doppler (como volume e espessura do ventrículo esquerdo, fração de ejeção, volume atrial esquerdo, presença ou não de valvopatia mitral significativa e ritmo cardíaco).
A última diretriz da Sociedade Americana de Ecocardiografia recomenda que a graduação da disfunção diastólica deve ser feita depois da estimativa das pressões de enchimento do ventrículo esquerdo.
Para isso, utilizamos 4 parâmetros principais para pacientes com fração de ejeção normal:
- Relação E/e’ média maior que 14
- Volume atrial esquerdo indexado maior que 34mL/m²
- e’ septal menor que 7 cm/s ou e’ lateral menor que 10 cm/s
- Velocidade do jato de regurgitação tricúspide maior que 2,8 m/s
A relação E/e’ média é idade-independente, raramente ultrapassando 14 em pacientes normais.
O aumento do volume do átrio esquerdo em pacientes sem arritmia atrial ou valvopatias mitrais crônicas também é um indicador indireto do aumento da rigidez e das pressões de enchimento do ventrículo esquerdo.
A redução da incursão diastólica do anel mitral (septal e lateral) refletem a dificuldade do relaxamento do ventrículo esquerdo. Devemos atentar ao fato de que alterações da contratilidade segmentar, calcificação do anel mitral, presença de anéis e próteses afetam estes parâmetros.
Na ausência de vasculopatia pulmonar e valvopatia tricúspide, a regurgitação tricúspide nos oferece um bom dado indireto das pressões de enchimento do ventrículo esquerdo e também é relativamente idade-independente.
Se mais da metade dos dados disponíveis preencherem os critérios, o paciente tem disfunção diastólica. Se menos da metade dos dados disponíveis preencherem os critérios, o paciente tem função diastólica normal. Se apenas metade dos dados disponíveis preencherem os critérios, a função diastólica fica então indeterminada.
Prestem atenção que estamos falando de dados disponíveis. Nem sempre teremos os 4 dados supracitados para análise. Em boa parte dos casos, teremos apenas 3 variáveis. A recomendação permanece a mesma. Se dois dos três parâmetros preencherem os critérios, temos disfunção diastólica; se apenas 1 for preenchido, temos função diastólica normal.
Nestes casos em que temos metade dos parâmetros normais e metade alterados ou naqueles em que temos apenas um dado alterado (de três disponíveis), podemos lançar mão de dados secundários para avaliar a probabilidade de estarmos diante de um paciente com disfunção diastólica ou não. Vamos conhecer alguns?
- Manobra de Valsalva: observamos o fluxo mitral durante 10 segundos, enquanto o paciente está fazendo o esforço, utilizando o Doppler pulsátil. A diminuição em 50% ou mais da relação E/A, na ausência de fusão dessas duas curvas, é indicativo de aumento das pressões de enchimento do VE.
- Hipertrofia do VE: assim como o volume atrial aumentado, hipertrofias ventriculares frequentemente estão associadas a pressões de enchimento maiores, pois tornam a câmara mais rígida e com necessidade de mais tempo para relaxar.
- Incursão sistólica do anel mitral, medida pelo modo M (MAPSE) e pelo Doppler tissular (s’) e Strain Global Longitudinal do VE: apesar de não estarem diretamente relacionados à função diastólica, sabemos que alterações destes índices podem significar disfunção miocárdica sistólica (até mesmo subclínica). Sístole e diástole estão intimamente relacionadas.
- O Strain rate sistólico (SRs) e o Strain rate diastólico (SRd) também podem ser utilizados para reclassificar pacientes com função diastólica indeterminada, como demonstrado em trabalho do Dr. José Castillo e colaboradores. O SRs estava diminuído nas disfunções graus 2 e 3, e o SRd diminuído já na disfunção grau 1.
Agora vamos a alguns exemplos de casos hipotéticos e quero que vocês respondam mentalmente o que acham: função diastólica normal, função diastólica alterada, função diastólica indeterminada. As respostas e comentários sobre os casos estarão escritas logo em seguida.
Caso 1: Paciente de 60 anos, com relação E/e’ média de 10; e’ lateral 8 cm/s; volume do AE indexado de 30 ml/m²; refluxo tricúspide não registrado.
Caso 2: Paciente de 45 anos, hipertenso, com relação E/e’ média de 15; e’ septal de 6 cm/s; volume do AE indexado de 42 mL/m²; velocidade máxima do refluxo tricúspide estimada em 1,7 m/s.
Caso 3: Paciente de 16 anos, atleta, sem comorbidades conhecidas, com relação E/e’ média de 8; e’ septal de 12 cm/s; volume do AE indexado de 37 mL/m²; sem refluxo tricúspide.
Caso 4: Paciente de 53 anos, diabética e hipertensa, com relação E/e’ lateral de 14; e’ lateral de 9 cm/s; volume do AE indexado de 28 mL/m²; velocidade máxima do refluxo tricúspide estimada em 2,2 m/s.
Respostas:
Caso 1: função diastólica normal. Temos 3 parâmetros disponíveis para avaliação, dos quais 2 são normais.
Caso 2: função diastólica alterada. Temos 4 parâmetros disponíveis para avaliação, com 3 deles preenchendo critérios de aumento das pressões de enchimento do VE.
Caso 3: função diastólica normal. Temos 3 parâmetros disponíveis para avaliação, dos quais 2 são normais. É comum observarmos aumento do volume atrial esquerdo em pacientes atletas, sem que isto signifique aumento das pressões de enchimento do VE. Esta condição, assim como outras alterações estruturais, usualmente são reversíveis após descondicionamento físico.
Caso 4: função diastólica indeterminada. Temos 4 parâmetros disponíveis para avaliação, dos quais apenas a metade preenche critérios para disfunção. Observem também que, neste caso, não utilizamos a relação E/e’ média, e sim, a relação E/e’ lateral. Em alguns casos, não conseguiremos obter dados confiáveis de Doppler tissular das duas posições do anel mitral para chegarmos na relação média e, então, poderemos utilizar a relação E/e’ septal ou lateral, com valores de referência acima de 15 e 13, respectivamente. Para este paciente em específico, devemos lançar mão de outros dados, além destes quatro principais, para reclassificá-lo em função diastólica normal ou alterada.
Gostaram do post? Têm alguma dúvida ou sugestão? Deixem nos comentários! Lembrando que essa foi a primeira parte de uma sequência de posts que faremos para discutir este assunto tão polêmico! Até breve!
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Graduada em medicina, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É pós-graduada em Cardiologia, pela Funcordis, e em Ecocardiografia, pela ECOPE. Possui título de Especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia.
Didático e Muito bom. Parabéns!
Muito obrigada, professor!!!
Tenho visto colegas insistirem em diagnosticar disfunção diastólica tipo I baseados apenas no fluxo mitral e relação E/A<0,8, mesmo na ausência de outros parâmetros…
Muito obrigada pelo comentário, Gilberto! Realmente… a avaliação diastólica é mais complexa e deve levar em consideração diversos fatores. Nas próximas semanas falaremos mais sobre isto. 😉
Boa tarde. Muito bom. Resumiu de uma forma fácil de entender. Pode enviar a referência da Diretriz?
Muito obrigada!!! Posso sim! A diretriz foi publicada em 2009 originalmente e, em 2016, a sociedade americana de ecocardiografia publicou novo documento esclarecendo algumas coisas, pois foi bastante polêmica a publicação original. A seguir, vou disponibilizar o link do documento de 2016. Você pode copiar e colar no seu navegador.
https://www.asecho.org/wp-content/uploads/2016/03/2016_LVDiastolicFunction.pdf
Lembro que em alguns artigos e também em congressos foi dito que pacientes com algumas condições clínicas, como por exemplo coronariopatas ou vítimas de AVC já deveriam ser considerados como portadores de disfunção diastólica do VE, independente dos critérios ecocardiográficos analisados. Como se da isso na prática? Frequentemente me vejo em dúvida quando estou avaliando um paciente internado por IAM e que os critérios não fecham para disfunção diastólica ou sugerem função diastólica normal. Nesses casos, baseado apenas em dados clínicos, eu deveria de fato indicar no laudo a presença de disfunção diastólica?
Excelente questionamento, Felipe!!! Existem vários fatores de confusão, quando analisamos a função diastólica em pacientes com fração de ejeção normal, principalmente quando avaliamos idosos com DAC subclinica. Farei uma sequência de postagens sobre função diastólica. Semana que vem vamos conversar sobre a graduação. E nas outras semanas, vamos abordar situações específicas, como a DAC. Como o assunto é muito grande, preferi dividir desta forma. Ok? 😉
Muito claro o resumo e os exemplos! Parabéns! Ah! se toda diretriz fosse clara e exemplificada como este artigo…
Muito obrigada, Ana!!! Fico feliz que posso ajudar ;D
parabéns pelo trabalho, a ideia de colocar exemplos foi ótima.
Muito obrigada, Fernando!!!
Parabéns pela excelente explanação! Na opinião de vocês, tendo em vista a quantidade de parâmetros para avaliação da função diastólica, uma boa prática seria utilizar, para efeito de laudo, esses 4 da diretriz 2016? No caso, me refiro especificamente, o que selecionar para o laudo como parte de uma rotina.
Obrigada, Silvana! Excelente pergunta. Veja… estes quatro parâmetros são os principais a serem utilizados pra avaliar se há ou não disfunção diastólica em pacientes com fração de ejeção normal. Lembrando que, no próprio texto, falamos sobre outros parâmetros que também podem ser utilizados, caso não tenhamos a maioria dos fatores positivos ou apenas a metade deles seja. Para fins de laudo, consideramos relevante relatar todas as variáveis utilizadas pelo examinador, no corpo da descrição do exame. Se você utilizar outros parâmetros que não sejam apenas estes 4, deverá incluí-los na descrição. Para fins de graduação de disfunção, utilizamos mais parâmetros, que serão discutidos nos próximos posts. Na conclusão do laudo, geralmente colocamos apenas a graduação da disfunção. Espero que tenha respondido a sua dúvida. Sim?
Obrigada Ana, respondeu sim.
Excelente trabalho!!!
Muito obrigada, George!!! 😉
tenho uma duvida em relação à esta disfunção. no documento original da ASE, em pacientes com fração de ejeção PRESERVADA, não há classificação em grau 1, 2 e 3? somente colocaria no laudo como função diastólica normal, indeterminada e disfunção?
Olá, Leonardo! Para pacientes com fração de ejeção preservada, sem cardiopatia estrutural evidente, alguns dos parâmetros gerais utilizados na graduação da disfunção diastólica podem ter resultados “alterados”, mas na realidade serem produtos da fisiologia normal destes pacientes e não de disfunção diastólica. Visto que todos os pacientes com disfunção diastólica têm elevação das pressões de enchimento do VE, faz-se necessário que primeiro verifiquemos se esta situação realmente existe, para que, depois, passemos ao algoritmo de graduação da disfunção. Aí sim, poderemos graduar em tipos 1,2,3 ou indeterminada. Em casos de disfunção indeterminada, recomendo escrever no laudo que existem sinais de disfunção, colocando os dados obtidos, porém a graduação não foi possível (e aí você escreve o porquê não foi). Espero ter respondido sua dúvida. Se não, deixe-me saber. Obrigada pela sua colaboração! 😉
Creio que a frase está errada ou mal colocada. “Para isso, utilizamos 4 parâmetros principais para pacientes com fração de ejeção normal”. Deveria ser ANORMAL.
Está correta. É para avaliar pacientes com fração de ejeção normal mesmo.