Na postagem anterior falamos sobre uma situação rara que é a ausência congênita (agenesia) do apêndice atrial esquerdo (AAE). Resolvi, então, trazer um editorial do DIC, publicado em 2022, sobre o AAE.
O AAE é uma extensão do átrio esquerdo (AE) e apresenta estrutura anatômica complexa, com propriedades fisiopatológicas únicas. Funciona como uma câmara de descompressão durante a sístole ventricular esquerda e em condições de pressão atrial esquerda elevada.
Por ser uma estrutura reconhecidamente importante na gênese da formação de trombos e eventos tromboembólicos, o conhecimento adequado dos aspectos anatômicos e funcionais do AAE se faz necessário atualmente, sobretudo com o avanço dos dispositivos oclusores e com a ecocardiografia intervencionista assumindo importante papel nesse contexto.
É uma estrutura tubular longa e fina, com base estreita originando do corpo do AE. É visualizado na borda esquerda do coração, comumente entre o ventrículo esquerdo (VE) e as veias pulmonares e se estende entre as paredes anterior e lateral do AE.
Sua ponta pode assumir diferentes posições, sendo que, em geral, direciona-se anterossuperiormente, sobrepondo a borda esquerda da vida de saída do ventrículo direito ou o tronco pulmonar e o ramo principal da coronária esquerda e a artéria circunflexa. Pode, também, se direcionar lateral ou posteriormente, alcançando o seio transverso do pericárdio em alguns pacientes.
Anatomicamente, o AAE está intimamente relacionado à artéria pulmonar, que se encontra superior a ele, e em sua porção inferior, à parede livre do VE.
O óstio do AAE é separado dos orifícios das veias pulmonares esquerdas pela crista lateral esquerda. Do outro lado, a parede lisa do AE separa o óstio do AAE do ânulo mitral.
Na transição entre o endocárdio liso do AE e a superfície enrugada do AAE é notado um estreitamento (seta vermelha) que marca o orifício do AAE.
A morfologia deste orifício pode ser elíptica (68,9%), com o eixo longo orientado obliquamente ao ânulo mitral, em forma de pé – foot-like (10%), triangular (7,7%) ou redonda (5,7%).
O AAE passa por uma região estreita antes de abrir em seu corpo. Nessa região, podem ser observados lobos variando entre um a quatro, sendo que a forma multilobulada (2 ou mais) é visto em 80% dos pacientes. Em estudo com análise post-mortem, foram constatadas as seguintes relações: unilobulado 20%; dois lobos 54%; três lobos 23%; e quatro lobos 3%.
A quantificação do número de lobos é importante porque um número maior de lobos está associado à presença de trombo independentemente do risco clínico e da estase sanguínea.
Existe uma grande diversidade anatômica, com quatro tipos morfológicos bem caracterizados:
1- Asa de galinha (chicken wing) – forma mais comum (48%) e associada a menor risco de formação de trombos;
2- Cacto (cactos) – 30%;
3- Biruta (windsock) -18%;
4- Couve-flor (cauliflower) – 3%, forma mais associada à eventos trombóticos (menor velocidade de fluxo sanguiíneo, apresentnado maior predisposição para estase).
Além da morfologia, outros fatores influenciam o risco de eventos tromboembólicos: (1) diâmetro menor do orifício, (2) quantidade de trabeculações e (3) número de lobos.
A superfície interna do AAE é trabeculada, apresentando feixes musculares chamados músculos pectíneos, que formam endentações complexas. Quando muito calibrosos, esses grupamentos musculares podem ser confundidos com trombos ou massas intra-atriais.
O AAE realiza contração ativa e sua velocidade de fluxo pode ser quantificada pelo Doppler pulsátil. Na maioria dos pacientes, esse fluxo é quadrifásico:
- A primeira onda corresponde ao fluxo de saída pela contração do AAE ao final da diástole ventricular;
- A segunda onda representa o fluxo anterógrado de enchimento do AAE durante a diástole atrial;
- A terceira, possui um componente positivo e um negativo, que são reflexões de ondas mecânicas ao final da sístole ventricular;
- Por último, há um fluxo de saída do AAE durante a fase de enchimento rápido ventricular.
A velocidade de fluxo diminuída se relaciona à presença de contraste espontâneo, sludge e trombo!
A presença de fibrilação atrial (FA), por exemplo, leva à um processo de remodelamento do AAE e faz com que ele funcione como uma bolsa estática (perdendo sua complacência), cedendo à estagnação e à trombose. Estima-se que aproximadamente 75% dos pacientes com episódios cardioembólicos, os êmbolos surgem do AAE. Trombos no AAE estão presentes em até 14% dos pacientes com FA aguda (<3 dias).
A ecocardiografia transesofágica (ETE) é o método de escolha para o estudo da anatomia e função do AAE. A sensibilidade e especificidade para detecção de trombos são de 92% e 98% respectivamente, com valor preditivo negativo de 100% e positivo de 86%.
Uma avaliação ecocardiográfica completa deve incluir imagens do AE, do VE e da valva mitral, juntamente de uma avaliação detalhada da morfologia do AAE, contração e velocidades de fluxo.
Apesar de ser uma estrutura tubular e estreita, os trombos do AAE podem ser identificados com precisão satisfatória pelo ETE. É importante reforçar, entretanto, que a sensibilidade do método diminui quando se trata de trombos pequenos ou trombos localizados dentro de um lobo lateral.
A avaliação funcional é realizada com o Doppler pulsátil, que deve ser colocado 1-2 cm do orifício do AAE. A medida de velocidade de fluxo é um indicador de risco de formação de trombo: o risco aumenta à medida que a velocidade diminui.
Velocidades < 40 cm/s, portanto, estão associadas a um maior risco de acidente vascular encefálico e à presença de contraste espontâneo. Velocidades < 20 cm/s, por sua vez, se associam à identificação de trombo e maior incidência de eventos tromboembólicos.
O trombo é definido como massa ecodensa no AAE, distinto do endocárdio do AE ou dos músculos pectíneos. Vários são os diagnósticos diferenciais e a interpretação equivocada de trombos, incluindo sombra acústica do ligamento de Marshall, músculos pectíneos ou a não diferenciação do sludge e contraste espontâneo denso.
Nos casos em que as imagens do AAE são subótimas, os agentes de contraste são úteis para melhorar a visualização do AAE.
DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS DE TROMBO NO AAE:
Há situações em que uma interpretação equivocada de imagem no interior do AAE pode levar a condutas precipitadas. O trombo deve ser diferenciado dos músculos pectíneos, artefato de reverberação originado da crista cumarínica, septos entre múltiplos lobos, contraste espontâneo e sludge.
– TROMBOS: localizam-se frequentemente na extremidade distal do AAE e quase sempre estão confinados ao seu lúmen, aderidos à parede do AAE. Possuem movimentação independente e padrão de ecogenicidade diferente da parede do AAE. Ainda, têm consistência uniforme. Frequentemente se associam à presença de contraste espontâneo no interior do AE;
– ARTEFATOS DE REVERBERAÇÃO: estão localizados em uma posição duas vezes a distância do transdutor até a crista cumarínica. Sua mobilidade é totalmente dependente do movimento da crista e tem morfologia compatível à do objeto ou estrutura a que se relaciona. Não possui relação com a presença de contraste espontâneo no AE;
– CRISTA CUMARÍNICA: quando proeminente, pode ser confundida com trombo;
– MÚSCULOS PECTÍNEOS: estão confinados ao corpo do AAE e sua mobilidade acompanha o movimento do apêndice. Possui ecogenicidade idêntica à da parede do AAE e não se relaciona com a presença de contraste espontâneo;
– CONTRASTE ESPONTÂNEO: também conhecido como “fumaça”, caracteriza-se como uma espécie de “névoa” rodopiante de densidade variável e que reflete baixa velocidade de fluxo sanguíneo. Pode ser observado em até 60% dos pacientes com FA;
– SLUDGE: também conhecido como “lodo” ou “lama”, é um fluido dinâmico de ecodensidade gelatinosa, sem uma massa bem definida, e está presente durante todo o ciclo cardíaco. Representa um estágio posterior ao contraste espontâneo e anterior à formação do trombo. Pode ter significado prognóstico.
O desenvolvimento do ETE 3D melhorou a habilidade de avaliar o AAE, ao permitir uma perspectiva seletiva de sua anatomia e melhor discriminação entre artefatos, massas e trombos. Permite, também, uma avaliação mais abrangente dos múltiplos lobos, que podem estar localizados em diferentes planos, além de uma estimativa mais precisa de sua geometria, tamanho e função.
Como visto, o AAE é uma estrutura complexa, com anatomia variável, constituindo o local mais comum de formação de trombos no contexto de FA não valvar.
As terapias transcateter atuais e emergentes, especialmente a implantação de dispositivos de oclusão ou exclusão do AAE, destacaram ainda mais a importância de compreender a anatomia e a função desta estrutura na prática clínica.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.
Excelente!!