A Importância da Ponta: entendendo a anatomofisiologia da contração miocárdica

A avaliação da mecânica da contração miocárdica é um passo de extrema importância, seja na ecocardiografia do esporte ou em condições patológicas.

Como assim? Em pacientes com alta carga de treino, a avaliação da rotação apical mostra se o padrão encontrado é compatível com o estímulo (modalidade de treino), auxiliando, portanto, na diferenciação entre padrão adaptativo e patológico. Em pacientes hipertensos, por sua vez, uma hiperativação da ponta pode indicar a presença de mecanismos compensatórios, demonstrando que a doença não está devidamente controlada.

Para tanto, vamos relembrar alguns importantes conceitos anatomofisiológicos do coração.

O conhecimento sobre a disposição das fibras miocárdicas é fruto de interesse desde a época da renascença, quando o genial Leonardo Da Vinci descreveu as fibras miocárdicas como sendo dispostas em direções diferentes na espessura parietal cardíaca.

O Coração de Da Vinci

Ao dissecar manualmente um coração de boi, o anatomista espanhol Francisco Torrent-Guasp, entre 1972 e 1980, demonstrou que o coração é constituído por um único feixe muscular (vídeo) enrolado em si mesmo, formando um duplo hélice, ancorado em uma extremidade no anel pulmonar e na outra extremidade, no anel aórtico.

Francisco Torrent-Guasp

Esse feixe apresenta duas bandas:

  • Basal: fibras circulares que rodeiam os ventrículos direito e esquerdo, com direção levemente ascendente e que estão ancoradas no anel valvar pulmonar;
  • Apical: formada por dois segmentos, (1) descendente subendocárdico, com fibras oblíquas originadas da reflexão das fibras da banda basal ao chegar ao bordo dos anéis tricúspide e mitral, refletindo-se na região da ponta ventricular para originar a (2) banda apical ascendente subepicárdica, com fibras em direção oposta à anterior, ancorando-se em parte no anel aórtico e formando parte da parede anterior dos ventrículos direito e esquerdo.
Torrent-Guasp F, Rev Esp Cardiol. 1998;51:91-102 – Vol. 51 Núm.2

Temos, então, uma disposição helicoidal com fibras subendocárdicas em uma direção e fibras subepicárdicas em outra direção, cruzadas em ângulo quase reto (!!!).

Castillo JMD, Strain Cardíaco, Revinter, 2013

Essa disposição permite que as fibras produzam, ao se contrair, um movimento de torção, em que a base do coração roda em sentido horário durante a sístole e a ponta, em sentido anti-horário, semelhante à uma toalha sendo torcida para tirar água.

Esse tipo de contração por torção, associada ao deslizamento que sofrem as fibras, é responsável pelo encurtamento do coração no sentido base-ápice durante a sístole e pelo aumento da espessura das paredes do miocárdio durante a ejeção ventricular.

Torrent-Guasp F, Rev Esp Cardiol. 1998;51:91-102 – Vol. 51 Núm.2

A deformação decorrente da torção ventricular, com rotação basal em sentido horário e a rotação apical em sentido anti-horário pode ser avaliada pela magnitude da rotação em graus.

Mora V et al. Cardiovasc Ultrasound 2018; 16:16

Assim, a rotação basal em sentido horário, por convenção, representa-se abaixo da linha de base (com sinal negativo) e a rotação apical, anti-horária, acima da linha de base. A diferença angular entre a base e a ponta denomina-se de torção apical ou twist.

Castillo JMD, Strain Cardíaco, Revinter, 2013

Vamos entender melhor!

No início da sístole, com a despolarização da banda apical descendente, o endocárdio roda em sentido horário. O epicárdio, ainda não despolarizado, é também arrastado em sentido horário. Logo após, com a despolarização simultânea das bandas apicais descendente e ascendente, o epicárdio roda no sentido anti-horário (e também arrasta o endocárdio nesse sentido, embora haja certa resistência a esta rotação).

Castillo JMD, Strain Cardíaco, Revinter, 2013

Esta avaliação tem como uma importante limitação (e que irá nos ajudar na interpretação do trabalho miocárdico nas regiões apicais) sua dependência do componente endocárdico que, quando diminui (alteração do relaxamento, aumento da pós-carga, por exemplo) provoca o fenômeno denominado “hiper rotação”.

Notomi Y. Measurement of ventricular torsion by 2D ultrasound speckle-tracking imaging. J. Am. Coll. Cardiol. 2005, 45:2034-2041.

Em nova postagens vamos aplicar esse conhecimento na prática, mostrando como essa avaliação pode nos ajudar no dia-a-dia.

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Camilo

Excelente!!

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