Ecocardiografia nas Doenças Sistêmicas: síndrome do anticorpo antifosfolípide

A síndrome do anticorpo antifosfolípide é uma condição autoimune caracterizada por hipercoagulabilidade, trombose vascular e perda fetal (de repetição) pela presença de anticorpos antifosfolípides (APLAs).

Dentre esses anticorpos, aqueles com maior relevância clínica são o anti-β2 glicoproteína I, anticardiolipina e coagulante lúpico. Em razão da sua natureza vascular, os aspectos clínicos desta síndrome podem ser variáveis e envolver diferentes órgãos ou sistemas.

J Am Soc Echocardiogr 2009;22:1100-8

Existem três possibilidades de apresentação da síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAAF):

  • Primária: ocorre na ausência de qualquer outra doença associada;
  • Secundária: ocorre na presença de uma outra doença autoimune, sendo o lúpus eritematosos sistêmico (LES) a condição clínica mais comumente associada;
  • Catastrófica (maligna): caraterizada pela presença de eventos trombóticos simultâneos ocorrendo em vários órgãos/sistemas.

Sendo assim, acometimento cardíaco pode ocorrer nesta síndrome e o (1) envolvimento valvar é descrito em em 35-50% dos pacientes com SAAF. Outras manifestações cardíacas incluem (2) formação de trombos intracavitários, presente em até 13% dos casos, mesmo na presença de ritmo sinusal, (3) hipertensão pulmonar por embolia pulmonar recorrente (3.5% dos casos), (4) isquemia miocárdica por infarto não aterosclerótico e consequente (5) disfunção ventricular.

Curr Rheumatol Rep (2013) 15:320

DOENÇA VALVAR:

Este tipo de apresentação acomete habitualmente as valvas cardíacas do lado esquerdo do coração, especialmente a valva mitral (VMi). O achado ecocardiográfico mais comum é o de espessamento dos folhetos valvares, de forma focal ou difusa, documentado em cerca de 40-60% dos casos.

O espessamento pode levar a um aumento da espessura dos folhetos valvares em até 3x o valor de normalidade e tem correlação direta com os títulos do anticorpo anticardiolipina.

Front. Cardiovasc. Med., 17 August 2022
Sec. Cardiovascular Imaging

Vegetações são menos frequentemente descritas e podem ser solitárias ou múltiplas, com formatos irregulares e podem ou não apresentar mobilidade. Quando na VMi, normalmente se localizam na face atrial e quando há acometimento da valva aórtica (VAo), podem ocorrer tanto na face ventricular quanto na face arterial.

Br J Cardiol 2011;18:241-242

Algumas publicações já relataram um padrão denominado “kissing lesions” em que há a presença de lesões em diferentes folhetos valvares, se opondo na linha de coaptação tanto na VMi como na VAo.

Curr Rheumatol Rep (2013) 15:320
J Am Soc Echocardiogr 2009;22:1100-8

Restrição de mobilidade a acometimento do aparato subvalvar são raramente observados e a presença de disfunção valvar hemodinamicamente significativa ocorre em apenas aproximadamente 3% dos casos.

Lesões trombóticas em próteses biológicas requerendo abordagem cirúrgica também já foram descritas na literatura.

No contexto da SAAF secundária, a VMi costuma ser mais frequentemente envolvida, seguida do acometimento da VAo, sendo raro o envolvimento das valvas tricúspide e pulmonar. O espessamento valvar também costuma ser o achado mais comum, ocorrendo em cerca de 30-70% dos pacientes.

A presença de espessamento difuso pode incorrer em perda de mobilidade, porém estenose significativa ou até mesmo regurgitação, raramente ocorrem.

Quando focal, o espessamento costuma acometer as regiões basais ou os segmentos médios dos folhetos valvares. Já em relação à presença de vegetações na SAAF secundária, essas podem ser múltiplas ou solitárias, assim como na SAAF primária, ocorrendo em 10-40% dos pacientes. Formato irregular, base larga e ausência de mobilidade são características desta apresentação.

Malviya, et al.: Cardiopulmonary bypass in an APLS patient, Annals of Cardiac Anaesthesia | Volume 25 | Issue 2 | April‑June 2022

Aqui, as vegetações normalmente se localizam na face atrial da VMi ou na face arterial da VAo, com predileção para a região proximal dos folhetos. O envolvimento de cordoalhas tendíneas é raro.

Roldan et al. observaram que as vegetações, no caso de SAAF secundária, apresentam a característica peculiar de uma região central hiperecogênica sugerindo fibrose e/ou calcificação.

Já em relação à SAAF maligna/catastrófica, poucos relatos na literatura descrevem o padrão ecocardiográfico do envolvimento cardíaco (talvez pela rápida deterioração clínica destes pacientes e alta mortalidade). O acometimento mitral e aórtico se caracteriza pela presença de múltiplas vegetações, além de disfunção microvascular (sem acometimento das artérias epicárdicas) levando à disfunção ventricular.

Catastrophic antiphospholipid syndrome in the setting of mitral valve repair El-Dalati, Sami et al. JTCVS Techniques, Volume 10, 275 – 277

EMBOLIA CARDIOGÊNICA:

As lesões valvares da SAAF apresentam potencial emboligênico significativo, sendo o risco de embolia cerebral 3 vezes maior em pacientes com SAAF e acometimento valvar.

Em uma série com estudos transesofágicos, a presença de trombose mural foi documentada em 13% dos indivíduos analisados, estando todos os participantes do estudo em ritmo sinusal e sem evidência de anormalidades estruturais ou funcionais que pudessem promover estase sanguínea.

Vale destacar que o achado de contraste espontâneo (11%) em pacientes com SAAF é observado com certa frequência, contudo o mecanismo relacionado a este achado ainda não é amplamente conhecido. Aglutinação reversível de células vermelhas em decorrência da estase intracardíaca pode ser uma possibilidade.

HIPERTENSÃO PULMONAR:

A prevalência estimada de hipertensão pulmonar em pacientes com SAAF primária é de 3.5% e na secundária, de 1.8%. A causa mais comum é tromboembolismo pulmonar recorrente com origem em trombose venosa em membros inferiores. Embora incomum, trombos nas cavidades direitas do coração também podem ser uma causa possível, bem como trombose de artéria pulmonar.

Türk Kardiyol Dern Arş – Arch Turk Soc Cardiol 2008;36(7):467-469

Independentemente da causa, a hipertensão pulmonar pode cursar com dilatação de câmaras direitas e disfunção ventricular direita.

DISFUNÇÃO VENTRICULAR ESQUERDA:

Alteração da contratilidade segmentar e disfunção ventricular esquerda podem ocorrer por diferentes mecanismos na SAAF. Infarto miocárdico pode ser resultado de aterosclerose das artérias epicárdicas ou por trombose de pequenos vasos, especialmente nos pacientes com a forma catastrófica da SAAF.

Pacientes com a forma secundária da síndrome podem desenvolver déficit segmentar ou global secundário à miocardite ou vasculite acometendo as artérias epicárdicas. Takotsubo também já foi descrita.

Estudos também já mostraram alterações nas pressões de enchimento em pacientes com SAAF sem outras condições que justificassem alteração da função diastólica. O mecanismo ainda não é totalmente conhecido, contudo a hipótese de isquemia induzida por vasculopatia trombótica de pequenos vasos é a mais aceita.

Portanto, o acometimento cardíaco nos pacientes com SAAF ocorre frequentemente e pode assumir diferentes apresentações, sendo o grande destaque a valvopatia.

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