Reserva de Fluxo Coronária: valor diagnóstico e prognóstico

A análise da reserva de fluxo da artéria coronária descendente anterior (DA) pode ser realizada durante o ecocardiograma com estresse, seja ele farmacológico ou físico.

Esta avaliação deve ser considerada como um dado adicional aos outros parâmetros habitualmente utilizados como critérios para isquemia, tendo em vista que a análise da reserva de fluxo coronariano (CFR – coronary flow reserve) tem papel limitado como “critério único” para isquemia miocárdica.

Sua limitação como parâmetro isolado se dá primeiramente porque apenas o fluxo da DA habitualmente é avaliado. Um outro ponto é esta avaliação não possibilita uma diferenciação entre doença microvascular ou macrovascular. Portanto, deve ser entendido como um critério adicional à alteração da contratilidade segmentar, por exemplo.

Do ponto de vista fisiopatológico, uma CFR normal tem alto valor preditivo negativo e, desta maneira, precisamos entender que a presença de alteração da contratilidade segmentar é um achado altamente preditor de doença arterial coronária (DAC), enquanto que a análise de CFR, quando normal, é mais eficiente para excluir esta doença.

Ciampi, Q. et al. J Am Coll Cardiol. 2019;74(18):2278–91

Apesar de já ser recomendado pelas principais diretrizes, como a Sociedade Europeia de Ecocardiografia, o uso da análise da reserva de fluxo coronário continua sendo utilizada em pequena escala. Contudo, o Stress Echo 2020 study coloca este parâmetro como parte do protocolo de 4 imagens padrão, assim como a utilização da análise das linhas-B (ultrassonografia pulmonar).

Em estudo com 4.410 pacientes com DAC ou insuficiência cardíaca (IC) conhecida ou suspeita, a análise da reserva de fluxo coronária foi realizada durante teste provocativo. A população do estudo foi composta por 1.349 mulheres e 2.061 homens, com idade média de 63 ± 11 anos e média da fração de ejeção de 61 ± 9%, de 20 centros de 8 diferentes países, incluindo o Brasil.

Ciampi, Q. et al. J Am Coll Cardiol. 2019;74(18):2278–91

Os critérios de inclusão foram (1) idade > 18 anos, (2) encaminhamento por DAC ou IC conhecida ou suspeitada, seja com fração de ejeção (FE) preservada ou reduzida, (3) ausência de doença valvar ou congênita, (4) janela ecocardiográfica adequada para avaliação da contratilidade segmentar do VE e (5) desejo de participar do estudo.

Ciampi, Q. et al. J Am Coll Cardiol. 2019;74(18):2278–91

Todos os pacientes realizaram estresse físico (bicicleta supina) ou farmacológico (dobutamina, dipiridamol, adenosina).

Ciampi, Q. et al. J Am Coll Cardiol. 2019;74(18):2278–91

O protocolo “ABCD” foi utilizado, sendo A – presença de nova ou piora de alteração contrátil segmentar já existente, B – presença de linhas – B na ultrassonografia pulmonar, C – análise da reserva contrátil do VE, com relação estresse/repouso sendo calculada pela pressão arterial sistólica (PAS)/volume sistólico final do VE em repouso e durante o pico do estresse e considerada como anormal quando ≤ 2.0 no estresse físico e com dobutamina, e ≤ 1.1 com adenosina ou dipiridamol, e D – reserva de fluxo coronário da DA.

O fluxo do terço médio-distal da DA foi obtido a partir do eixo paraesternal eixo longo “baixo” ou apical modificado. 03 pontos “ótimos” do pico do fluxo diastólico foram medidos com e o resultado considerado foi a média dessas 03 medidas.

Kakuta et al, Journal of the American Society of Echocardiography, 2014

A reserva de fluxo coronária foi definida como a relação entre as velocidades de pico diastólica na fase de hiperemia máxima e basal (repouso). Uma relação ≤ 2.0 foi considerado anormal de acordo com o que foi definido em diretrizes anteriores.

Gaibazzi, Nicola et al. Coronary Flow Velocity Reserve Reduction Is Associated with Cardiovascular, Cancer, and Noncancer, Noncardiovascular Mortality, Journal of the American Society of Echocardiography, Volume 33, Issue 5, 594 – 603

Após exclusão de alguns participantes, o estresse físico foi realizado em 1.288 pacientes enquanto que estresse farmacológico, em 2.122 (dipiridamol = 1.842, adenosina = 18, dobutamina = 262).

A taxa de sucesso da análise do fluxo da DA para determinar a reserva de fluxo foi de 3.002 / 3.410 (88%): estresse físico – 1.025 / 1.288 (80%), dipiridamol/adenosina – 1.766 / 1.860 (95%) e dobutamina – 211 / 262 (81%).

Dos 408 pacientes em que não foi possível obter o fluxo da DA, a maior parte tinha oclusão total desta coronária em angiografia subsequente.

Uma reserva de fluxo alterada (≤ 2.0) foi observada em 896 pacientes. Estes apresentaram maior prevalência de histórico prévio de angioplastia ou cirurgia de revascularização miocárdica, diabetes, presença de alteração da contratilidade segmentar induzida pelo estresse e mais linhas -B.

Ciampi, Q. et al. J Am Coll Cardiol. 2019;74(18):2278–91

Análise por regressão linear demonstrou uma relação inversa entre reserva de fluxo coronária e índice de alteração da contratilidade segmentar (r = -0.362; p < 0.001) e uma relação direta entre reserva de fluxo coronário com reserva contrátil do VE ( r = 0.2335; p < 0.001).

Ciampi, Q. et al. J Am Coll Cardiol. 2019;74(18):2278–91
Ciampi, Q. et al. J Am Coll Cardiol. 2019;74(18):2278–91

Uma relação inversa observada entre a reserva de fluxo coronária e presença de linhas-B durante o estresse documentada em 2.445 pacientes (r = 0.2331; p < 0.001).

Ciampi, Q. et al. J Am Coll Cardiol. 2019;74(18):2278–91

Uma resposta isquêmica (presença de alteração contrátil) associado a uma reserva de fluxo reduzida foi observada em 384 pacientes (13%). Por outro lado, uma resposta isquêmica associada a uma reserva de fluxo normal foi documentada em 137 casos (4%), enquanto que uma resposta não isquêmica com reserva de fluxo alterada, em 512 pacientes (17%) e uma resposta não isquêmica com reserva de fluxo normal em 1.969 pacientes (66%) – p < 0.001).

Ciampi, Q. et al. J Am Coll Cardiol. 2019;74(18):2278–91

Pela análise de multivariáveis, idade avançada, presença de diabetes, alteração da contratilidade segmentar, valores anormais de reserva contrátil do VE e aumento de linhas-B foram considerados como variáveis associadas a maior risco de reserva de fluxo reduzida.

Ciampi, Q. et al. J Am Coll Cardiol. 2019;74(18):2278–91

Dos 694 pacientes com DAC definida por estudo anatômico, invasivo ou não, 432 tinham doença de um único vaso, 167 tinham acometimento de duas artérias e 95 pacientes, padrão triarterial.

No contexto daqueles pacientes com acometimento da DA, a reserva de fluxo foi menor na presença de estenose > 90% (n = 79, reserva de fluxo: 1.79 ± 0.66; p < 0.001) comparado com aqueles com lesões entre 70-90% (n = 90, reserva de fluxo: 1.90 ± 0.66; p < 0.001) e com lesões entre 50-70% (n = 90, reserva de fluxo: 2.05 ± 0.62).

A redução da reserva de fluxo foi encontrada em 104 dos 455 pacientes (23%) sem DAC, 119 dos 432 pacientes (27%) com lesão em um único vaso, 72 dos 167 pacientes (43%) daqueles com lesão em duas artérias e em 62 dos 95 pacientes (63%) com doença triarterial.

O valor médio da reserva de fluxo foi de 2.31 ± 0.49 nos pacientes sem DAC, 2.26 ± 0.54 nos pacientes uniarteriais, 2.13 ± 0.73 na doença acometendo 02 artérias e de 1.91 ± 0.81 naqueles com doença em 03 vasos.

Durante o seguimento médio de 16 meses (13-20 meses) de 1.867 pacientes, 22 faleceram, outros 22 evoluíram com infarto agudo do miocárdio (IAM) não fatal, 7 tiveram AVC, 55 foram rehospitalizados por IC aguda e 112 foram submetidos à revascularização miocárdica.

A taxa de eventos foi menor entre os pacientes com reserva de fluxo preservada comparando com aqueles que apresentaram redução deste parâmetro.

Ciampi, Q. et al. J Am Coll Cardiol. 2019;74(18):2278–91

A análise da reserva de fluxo pode e deve ser, portanto, incorporada à outros achados, como alteração da contratilidade segmentar, para incrementar o valor diagnóstico do ecocardiograma com estresse no contexto de DAC.

A combinação de redução da reserva de fluxo com alteração contrátil induzida pelo esforço tem potencial para expandir o espectro prognóstico na estratificação de pacientes com DAC ou IC, já que aqueles com um padrão duplo negativo (reserva de fluxo normal e ausência de déficit contrátil) apresentaram uma evolução mais benigna.

Ainda, esta ferramenta pode ir além da DAC obstrutiva, em que a presença de reserva de fluxo reduzida na ausência de déficit segmentar (achados discordantes) pode ser um forte indicativo de disfunção microvascular.

Podemos, então, entender os achados do estudo da seguinte forma:

  • Reserva de fluxo normal + Ausência de déficit contrátil: não isquêmico
  • Reserva de fluxo reduzida + Ausência de déficit contrátil: disfunção microvascular
  • Reserva de fluxo reduzida + Presença de déficit contrátil: isquêmico
Ciampi, Q. et al. J Am Coll Cardiol. 2019;74(18):2278–91
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