Falamos aqui recentemente sobre a disfunção miocárdica reversível que ocorre em alguns corredores de maratona após uma prova, inclusive demonstrando uma condição clínica patológica – cardiomiopatia de Phidippides – que pode surgir a partir deste padrão de fadiga (ver postagens anteriores).
Se, durante uma maratona, pode ocorrer esse padrão de alteração funcional cardíaca, o que esperar, portanto, que aconteça em indivíduos que percorrem distâncias ainda maiores, como por exemplo nas ditas ultramaratonas (seja em trilha ou em ambientes “mais controlados”)?
Estudo observacional com 66 participantes em uma prova de “eco-trilha” com 80 km de distância, ocorrida na França. Os critérios de inclusão foram (1) idade > 18 anos, (2) sexo masculino, e (3) já ter completado algum evento de ultra endurance (distância > 50 km) nos últimos 12 meses. Aqueles com alguma comorbidade ou com alguma alteração documentada no primeiro ecocardiograma foram excluídos.
Todos os participantes realizaram ecocardiograma 24h antes do início da prova e após o término dela e 28 indivíduos realizaram exames adicionais durante a corrida (nos km 21 e 53).
Dos 66 participantes avaliados, 49 (74%) conseguiram completar a prova e daqueles 28 que foram submetidos a avaliações adicionais durante a corrida, apenas 21 tiveram as análises realizadas de forma completa segundo o protocolo estabelecido pelo estudo.
Em relação aos parâmetros ecocardiográficos convencionais, não foram observadas diferenças significativas em relação às cavidades cardíacas, com exceção do diâmetro sistólico final do ventrículo esquerdo (p = 0.01).
Todos os parâmetros de função sistólica apresentaram redução: fração de ejeção (P < 0.0001), fração de encurtamento do ventrículo esquerdo (p < 0.0001), média da onda S mitral (p = 0.002), onda S do anel tricúspide (p = 0.0002) e strain de pico sistólico global (p = 0.0008).
Em relação aos parâmetros de função diastólica, houve redução significativa da relação E/A (p = 0.0001) e da e´ média (p = 0.0004).
No subgrupo dos 28 participantes com estudos adicionais foram observadas as mesmas características ecocardiográficas tanto antes do início da prova quanto ao final dela.
A avaliação realizada no km 21 não demonstrou diferenças significativas nos parâmetros de função sistólica do ventrículo esquerdo (VE), contudo diferenças significativas no strain global longitudinal (SGL) foram observadas durante a avaliação realizada no km 53 (-19.4 ± 3% x -22.1 ± 2.1% antes da prova, p = 0.0008), mas não na fração de ejeção do VE (70.4 ± 2.5% antes da prova x 67.3 ± 2.9%, p = 0,21),
Ao término da prova todos os parâmetros de função sistólica do VE estavam reduzidos.
Houve mudanças significativas nas velocidades do fluxo transmitral entre o km 21 e o término da prova: relação E/A 1.64 ± 0.70 no início da prova x 1.03 ± 0.37 no km 21, p = 0.0002).
A análise do strain longitudinal destes participantes observou dois padrões diferentes de resposta à alta carga de esforço físico: (1) indivíduos sem redução significativa da função sistólica (variação do SGL < 10%) durante a prova (grupo A, 52% dos atletas) e (2) indivíduos que apresentaram redução significativa (grupo B, 48%).
Não houve diferenças entre os grupos A e B nas análises realizadas antes do início da prova, sobretudo em relação ao parâmetros de função sistólica do VE (SGL p = 0.7 e fração de ejeção p = 0.91).
Durante a prova e ao final dela, não foram observadas diferenças nos parâmetros hemodinâmicos (frequência cardíaca e pressão arterial) entre os dois grupos. A avaliação realizada no km 21 não foi diferente daquela realizada antes do início da prova.
Contudo, no km 53 e ao término da prova, apenas a função sistólica (fração de ejeção e SGL) foi reduzida de forma significativa no grupo B, sem diferenças nos outros parâmetros avaliados quando comparados com o grupo A.
O estudo documenta, portando, alterações tanto de parâmetros de função sistólica quanto da função diastólica durante uma prova de ultra distância, sendo as alterações da função diastólica ocorrendo em fases mais precoces durante a prova.
A disfunção sistólica não foi “regra” em todos os participantes, sendo observada em 48% dos atletas e detectada mais precocemente pela análise do strain global longitudinal.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.