Acometimento Cardíaco nas Doenças Neuromusculares: ênfase na ecocardiografia

As distrofias musculares englobam um grupo heterogêneo de doenças causadas por anomalias dos genes de codificam várias proteínas que desempenham diferentes funções nas células musculares.

Apesar de constituírem um grupo amplo de diferentes diagnósticos, compartilham algo em comum: acometimento cardíaco associado, sendo a doença miocárdica muitas vezes a principal causa de morbimortalidade.

Neste momento você deve estar pensando “Nossa! Dessa vez Caio forçou demais a barra ao abordar um assunto tão específico da neurologia. Sim! Concordo, mas há algumas semanas recebi um paciente com diagnóstico de Distrofia tipo Cintura (doença esta que eu particularmente nunca tinha ouvido falar) para avaliação ecocardiográfica e confesso que fiquei bem perdido, sem saber o que “esperar” do exame. Como, aqui, o objetivo é compartilhar conhecimentos, vamos em frente…

Caracterizada por acometimento da musculatura estriada, resultando em fraqueza muscular progressiva, o músculo cardíaco também pode ser afetado por diversas doenças neuromusculares, com acometimento variável à depender da base genética da mutação envolvida em cada doença.

O acometimento cardíaco, com relevância clínica, pode ser dividido em duas formas mais comuns de apresentação: (1) cardiomiopatia e (2) alterações do sistema de condução com arritmias cardíacas.

Miocardiopatia hipertrófica em paciente com Doença de Danon (https://doi.org/10.1016/j.case.2019.04.007)

Normalmente, as alterações cardíacas já podem ser detectadas desde a infância (e, por isso, existe uma recomendação da Academia Americana de Pediatria para que seja realizado um rastreio cardiológico em todas as crianças que tenham alguma distrofia muscular) até a segunda década de vida.

Distrofia miotônica, ataxia de Friedreich, distrofia muscular de Emery-Dreifuss, síndrome de Barth são exemplos de condições em que o diagnóstico de miocardiopatia pode ser detectado ainda na infância. Por outro lado, doenças como distrofia muscular de Becker e miopatias miofibrilares podem ter acometimento cardíaco tardio, em idades mais avançadas.

Do ponto de vista cardiovascular, o diagnóstico genético têm importância, dada a grande variabilidade de manifestações cardíacas possíveis entre as diferentes formas de doenças neuromusculares. Doenças, como por exemplo, a distrofia muscular tipo cintura fenótico [LGMD]1B está associada a um risco maior de arritmias malignas e morte súbita, enquanto que a ataxia de Friedreich se relaciona mais com miocardiopatia e insuficiência cardíaca. Outras, como a síndrome de Barth pode ter acometimento “misto“. Por outro lado, existem condições em que não há doença cardíaca associada, como ocorre na distrofia muscular óculo-faríngea.

O estudo ecocardiográfico desses pacientes muitas vezes se apresenta como um cenário desafiador, muito em decorrência da limitação das janelas acústicas, seja pela restrição de mobilidade (acreditem: posicionar adequadamente pacientes com acometimento muscular significativo pode ser praticamente impossível!) ou por deformidades esqueléticas (vícios posturais compensatórios, escoliose…).

#Distrofia Muscular de Duchenne:

Forma mais frequente de distrofia muscular, tem acometimento cardíaco frequente, porém com sintomas “mascarados” pela importante limitação muscular (daí a necessidade do rastreio de rotina).

A avaliação cardíaca é recomendada entre os 6 e os 10 anos, ou à data da apresentação, e a periodicidade de avaliação deve ser de 2/2 anos até aos 10 anos e posteriormente anual ou mais frequente dependendo das alterações encontradas.

Por ter acometimento cardíaco precoce, costuma ser um paciente da cardiopediatria. A partir dos 10 anos de idade, em média, desenvolve -se o acometimento miocárdico. Aos 14 anos de idade, por exemplo, o ecocardiograma mostra miocardiopatia (MCP) dilatada em 50% dos pacientes, dos quais apenas 36% são sintomáticos. Acima dos 18 anos de idade praticamente todos os doentes apresentam MCP (57% sintomáticos).

#Distrofia Muscular de Becker:

O grau de envolvimento cardíaco é desproporcional ao envolvimento da musculatura esquelética. As manifestações cardíacas podem se apresentar em idade mais avançada, quando comparada com Duchenne, por volta da terceira década de vida. Cerca de 70% dos pacientes com > 40 anos de idade desenvolvem insuficiência cardíaca. Além do acometimento miocárdico, arritmias ventriculares também podem ocorrer.

#Distrofia muscular de Emery-Dreifuss:

As manifestações cardíacas aqui são relacionadas a alteração do sistema de condução. As bradiarritmias são frequentes em pacientes com idade entre 20-40 anos, com tendência para bloqueios atrioventriculares avançados. Fibrilação atrial e/ou Flutter atrial são situações comuns.

Quando há mutação AD-EDDM (laminopatias), o acometimento miocárdico pode estar associado à alterações do sistema de condução, com frequente evolução para disfunção ventricular esquerda.

#Distrofia Muscular tipo Cintura:

Existem diferentes subtipos, geneticamente já reconhecidos, cujas manifestações cardíacas irão variar de acordo com cada tipo de mutação.

Surgem com maior frequência nas sarcogliconopatias (LFMD2C a 2F), sobretudo sob a
forma de miocardiopatia. A incidência de arritmias é baixa, sendo mais prevalente nas formas autossômicas dominantes.

# Distrofia Miotônica:

Forma mais comum no adulto, possui duas variantes: tipo 1 (DM1) e tipo 2 (DM2). Na DM1 existem três possíveis formas de apresentação: (1) congênita com manifestações cardíacas graves neonatais: cardiomiopatia hipertrófica, miocárdio não compactado, alterações do ritmo e morte súbita; (2) uma forma leve que se detecta acima dos 50 anos e está associada a fraqueza muscular de leve intensidade e uma expectativa de vida normal; (3) e a forma clássica, mais frequente, que se manifesta entreos 20 -40 anos.

As manifestações cardíacas na DM1 ocorrem sob a forma de arritmias. Aparentemente o envolvimento miocárdico é raro. Estas alterações são responsáveis por 20% das mortes destes pacientes.

# Ataxia de Friedreich:

A miocardiopatia hipertrófica está presente em cerca de 2/3 dos pacientes, podendo evoluir para uma fase dilatada nas fases finais da doença.

2013 International Society for Neurochemistry, J. Neurochem. (2013) 126 (Suppl. 1), 88–93
Sílvia Álvares, Paediatric Cardiology in Clinical Practice, 2010

Como observado, não existe nenhum padrão específico, com algum tipo de peculiaridade, em relação às alterações cardíacas, mas sim uma forma de acometimento que pode ser predominantemente miocárdica ou relacionada à arritmias cardíacas.

Neste cenário, se faz importante, portanto, criar uma forma sistematizada de avaliação (screening) cardiológico, já que as manifestações clínicas das alterações cardíacas frequentemente estão mascaradas pelo acometimento muscular (seja pela limitação funcional ou por compartilhar sintomas semelhantes, como dispneia, tosse, fraqueza muscular). Isso faz com que um grande número de pacientes tenha o diagnóstico do acometimento cardíaco retardado, implicando em impacto prognóstico significativo.

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Antonio Luiz Junior

Excelente revisão Caio , parabéns !!!

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