Dando continuidade à análise da estenose mitral (EMi) degenerativa/calcífica, aqui vamos fazer um breve comparativo, com ênfase nos aspectos ecocardiográficos, com a EMi de etiologia reumática.
Um artigo publicado no American Journal of Cardiology em 2020 (Am J Cardiol 2020;125:1536−1542) comparou aspectos clínicos e ecocardiográficos de pacientes com EMi de etiologias degenerativa e reumática. Para todos os pacientes, os seguintes parâmetros foram avaliados:
- Stroke Volume;
- Gradiente transvalvar mitral médio (Gmédio);
- Área valvar calculada por 3 métodos: PHT, planimetria através do eixo curto e equação de continuidade;
- Complacência atrioventricular (Cn): área valvar/tempo de desaceleração da onda E (definido como 1270);
- PSAP.
A análise comparativa foi realizada entre todos os pacientes, mas também houve uma análise de subgrupo de pacientes com EMi importante (área valvar ≤ 1,5 cm²), excluindo aqueles com estenose aórtica (EAo) importante e/ou regurgitação mitral ou aórtica ≥ moderada, fibrilação atrial (FA) e pacientes em terapia renal substitutiva.
Em relação aos aspectos demográficos, pacientes com EMi degenerativas são mais velhos e com mais comorbidades, contudo a incidência de FA foi maior no grupo da EMi reumática. Em ambos os grupos, as mulheres foram predominantes.
As velocidades das ondas E, A e relação E/A foram similares em ambos os grupos. Vale lembrar que, no contexto de estenose mitral, essas variáveis se relacionam com gravidade da disfunção valvar e não com a função diastólica do ventrículo esquerdo (VE).
Pacientes com EMi degenerativa apresentaram Gmédio menor (7.63 ± 3.63 x 8.5 ± 4.23 mmHg, p = 0.04) e com área valvar maior (1.35 ± 0.41 vs 0.95 ± 0.38 cm², p <0.0001) por uma média de 0.4 cm², independentemente do método utilizado para este cálculo. Esses achados podem ser justificados pela presença de um stroke volume maior (70.4 ± 19.7 vs 55.7 ± 15.5 ml, p <0.0001) no grupo da EMi degenerativa.
O volume átrio esquerdo (indexado) foi maior nos pacientes reumáticos (82.1 ± 40.3 vs 57.9 ± 21.4 ml, p <0.0001). Um dado interessante é que, entre os pacientes com EMi reumática, não houve diferença significativa do volume do átrio esquerdo (AE) entre aqueles com FA e aqueles com ritmo sinusal (84.4 ± 41,2 ml x 79,6 ± 39,3 ml, p = 0,25).
Por outro lado, o mesmo não foi observado no grupo de EMi degenerativa. Pacientes com FA apresentaram volumes indexados do AE significativamente maiores que os pacientes em ritmo sinusal (70,9 ± 30,4 ml x 55,0 ± 17,9 ml, p = 0.007).
A PSAP foi maior no grupo da EMi degenerativa (49.3 ± 16.5 vs 39.4 ± 13.6 mm Hg, p <0.0001), com esta diferença permanecendo mesmo após o “pareamento” com área valvar e Gmédio.
A Cn foi numericamente maior, porém de forma não significativa, nos pacientes do grupo degenerativo.
As mudanças na geometria valvar secundárias à estas duas condições se dão de forma distinta. Na EMi reumática, a valva mitral assume um formato em domo, com um orifício valvar circular com aspecto que se assemelha à “boca de peixe”. Há fusão comissural predominante, o que pode fazer com que os folhetos valvares persistam apresentando certa mobilidade.
Já na EMi degenerativa, as comissuras permanecem com boa abertura, contudo a estenose ocorre em razão do depósito de cálcio predominantemente no anel valvar e que vai progredindo para as regiões basais (proximais) dos folhetos valvares, os tornando rígidos (ou seja, com restrição de mobilidade). Isso faz com que o ponto de coaptação seja anteriorizado e com que o orifício regurgitante assuma um formato em crescente (tunelizado).
Outro estudo (Kuyama Naoto et al, Comparison of Clinical Characteristics, Natural History and Predictors of Disease Progression in Patients with Degenerative Mitral Stenosis versus Rheumatic Mitral Stenosis, The American Journal of Cardiology, 2020), comparando estes dois diferentes fenótipos de EMi avaliou a taxa de progressão da doença, definida pelo aumento anual do Gmédio, bem como o impacto prognóstico desta evolução (hospitalização por insuficiência cardíaca – IC, morte cardiovascular e morte não cardiovascular).
No seguimento médio de 2.2 anos, a progressão de doença foi observada em 50% dos pacientes com EMi degenerativa e em 54% dos pacientes com EMi reumática (p = 0.49). A taxa de progressão anual foi de 0.0 ± 1.5 mmHg/ano e 0.3 ± 1.2 mmHg/ano (p = 0.12), respectivamente.
No seguimento de 4 anos, não houve diferença significativa em relação à hospitalização por IC entre os dois grupos (26% – EMi degenerativa x 29% – EMi reumática, p = 0.61). Contudo, foi observado, no grupo dos pacientes com EMi degenerativa, que aqueles pacientes que apresentaram progressão da doença tiveram mais hospitalização quando comparados com aqueles que não tiveram progressão da doença documentada (34% x 18%, p = 0.046).
A progressão de doença não se associou, durante o seguimento, com aumento de mortalidade por todas as causas ( p = 0.88) ou por causas cardiovasculares (p = 0.38). Outro dado interessante deste estudo foi que a presença de fatores de risco para doença aterosclerótica e Gmédio menores, mas não a gravidade da calcificação do anel mitral (MAC), se associaram com progressão de doença no grupo da EMi degenerativa.
Portanto, a progressão da doença degenerativa foi inversamente associada ao Gmédio. O mecanismo especulado para justificar esse achado é quem nos pacientes em que já existe uma calcificação importante com acometimento dos folhetos da valva mitral, não há mais tanto tecido valvar para progressão do dano. Já naqueles com EMi leve, há ainda muito tecido normal para ser acometido pelo processo de calcificação.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.