Trabalho Miocárdico na Cardiomiopatia Hipertrófica: aplicações

A cardiomiopatia hipertrófica (CMPH) é caracterizada pelo aumento da espessura da parede miocárdica acompanhada por um desarranjo miofibrilar e fibrose intersticial. Outrora considerada uma doença com restrições significativas à qualidade de vida do paciente, sabemos atualmente que a avaliação deve ser sempre feita de forma individualizada e utilizando todos os recursos possíveis dentro da cardiologia diagnóstica no sentido de detectar aqueles pacientes que realmente estão sob maior risco de eventos negativos.

A análise do strain miocárdico, por exemplo, é capaz de detectar alterações da função sistólica do ventrículo esquerdo (VE), mesmo na presença de fração de ejeção preservada, bem como se correlaciona com fibrose miocárdica pela ressonância magnética (RM) cardíaca.

Seguindo esta linha de raciocínio, qual seria o papel do trabalho miocárdico na CMPH ?

Adaptado de The International Journal of Cardiovascular Imaging
https://doi.org/10.1007/s10554-021-02186-3
J Am Soc Echocardiogr 2020;33:1201-8

Estudo cujo objetivo foi descrever o trabalho miocárdico, a partir da análise segmentar e global, em pacientes com CMPH, bem como fazer uma correlação dos achados com outros parâmetros ecocardiográficos e também avaliar a associação dos parâmetros do trabalho miocárdico com desfechos negativos.

Foram avaliados pacientes com o diagnóstico de CMPH, seguindo os critérios atuais descritos nas principais diretrizes, sem obstrução ao fluxo de via de saída. Um grupo de 35 indivíduos sem cardiopatia estrutural foi selecionado como controle.

O desfecho primário do estudo foi o composto de (1) mortalidade por todas as causas, (2) transplante cardíaco, (3) hospitalização por insuficiência cardíaca, (4) morte súbita aborda e (5) terapia adequada do cardiodesfibrilador implantável (CDI).

Um total de 145 participantes foram avaliados, sendo 110 pacientes com o diagnóstico de CMPH (idade média 55 ± 15 anos, 66% do sexo masculino) e 35 controles saudáveis (idade média 52 ± 16 anos, 51% do sexo masculino).

J Am Soc Echocardiogr 2020;33:1201-8

Comparado com o grupo controle, os pacientes com CMPH apresentaram valores elevados da pressão arterial sistólica (PAS) e QRS com maior duração. Fibrilação atrial prévia foi documentada em 19 pacientes com CMPH (17%), 20% dos pacientes tinham sintomas de insuficiência cardíaca (IC) com classe funcional ≥ II e 21 pacientes (19%) eram portadores de CDI.

J Am Soc Echocardiogr 2020;33:1201-8

Pacientes com CMPH apresentaram valores significativamente menores de GWI (1,534 ± 551 x 1,929 ± 473 mmHg%, P < 0.001) e de GCW (1,722 ± 602 x 2,274 ± 574 mmHg%, P < 0.001), como também valores significativamente maiores de trabalho desconstrutivo (104 mmHg% IQR: 66-127 mmHg% x 71 mmHg% IQR 49-92 mmHg%, P < 0.001), resultando em uma eficiência global menor com uma média de 93% (IQR: 89-95%) para os pacientes com CMPH comparando com uma média de 96% (IQR: 96-97%) no grupo controle (P < 0.001).

J Am Soc Echocardiogr 2020;33:1201-8

O trabalho construtivo (GCW) apresentou correlação significativa com o volume indexado do átrio esquerdo (r = -0.37, P < 0.001), espessura diastólica máxima do VE (r = -0.41, P < 0.001, função diastólica do VE (r = -0.27, P = 0.001) e duração do QRS ( r = -0.28, P = 00.1). Este parâmetro ainda apresentou elevada correlação com o strain global longitudinal do VE (r = 0.85, P < 0.001), contudo não se correlacionou com os volumes sistólico e diastólico do VE.

Durante o seguimento médio de 5.4 anos (IQR: 3.0-7.8 anos), 24 pacientes (22%) apresentaram o desfecho primário composto: 01 paciente foi submetido à transplante cardíaco, 01 paciente teve morte súbita abortada, 10 pacientes apresentaram terapia adequada do CDI e 11 pacientes morreram (morte cardíaca em 04 destes, não cardíaca em 03 e causa desconhecida nos outros 04).

Em relação a associação dos parâmetros ecocardiográficos com o desfecho primário composto foi observado que o strain global longitudinal (SGL) do VE mostrou um AUC 0.74 (95%IC: 0.63-0.85, P < 001). O GWI também mostrou uma boa associação, com AUC 0.77 (95%IC: 0.66-0.87, P < 0.001).

O trabalho construtivo demonstrou AUC 0.78 (95%IC: 0.68-0.88, P < 0.001) enquanto que o trabalho desconstrutivo não mostrou associação significativa com desfecho primário, AUC 0.53 (95%IC: 0.39-0.68, P = 0.61). Já a eficiência global (GWE) mostrou uma associação limítrofe, com AUC 0.63 (95%IC: 0.48-0.77, P = 0.06).

Quanto a sobrevida, pacientes com valores menores de trabalho construtivo (GCW < 1,730 mmHg%) apresentaram pior sobrevida livre de eventos comparados com aqueles que tiveram GCW > 1.730 mmHg% (P < 0.001).

J Am Soc Echocardiogr 2020;33:1201-8

Em relação à análise segmentar, o trabalho construtivo de todos os segmentos esteve menor nos pacientes com CMPH comparados com o grupo controle. O trabalho desconstrutivo, por sua vez, apresentou diferenças apenas nos segmentos apical e da parede anterior.

J Am Soc Echocardiogr 2020;33:1201-8

Quanto aos diferentes fenótipos de CMPH, como esperado, o trabalho construtivo foi menor na região mais acometida (CMPH apical –> segmentos apicais). De forma geral, pacientes com os fenótipos septal e simétrica tiveram valores menores de trabalho construtivo quando comparados com aqueles com CMPH apical.

J Am Soc Echocardiogr 2020;33:1201-8

Neste estudo, portanto, fica documentado que pacientes com CMPH apresentaram valores diminuídos de SGL do VE bem como dos parâmetros de trabalho miocárdico (GWI, GCW, GWW e GWE) quando comparados com indivíduos saudáveis. O trabalho construtivo diminuído, por sua vez, mostrou correlação com a espessura diastólica do VE, função diastólica e duração do QRS, se associando de forma significativa com eventos adversos.

Em um outro documento sobre a aplicação do trabalho miocárdico, o tópico CMPH também é citado.

Circ Cardiovasc Imaging. 2023;16:e014419. DOI: 10.1161/CIRCIMAGING.122.014419
Circ Cardiovasc Imaging. 2023;16:e014419. DOI: 10.1161/CIRCIMAGING.122.014419

Ele enfatiza que este recurso é uma ferramenta com utilidade potencial para avaliar a função sistólica dos pacientes com CMPH. Reitera o achado de valores reduzidos de trabalho construtivo nesta população, inclusive havendo associação deste parâmetro com a presença de fibrose significativa na RM (OR 0.01, 95%IC: 0.99-1.08, P = 0.04).

Galli E, Vitel E, Schnell F, Le Rolle V, Hubert A, Lederlin M, Donal E. Myocardial constructive work is impaired in hypertrophic cardiomyopathy and predicts left ventricular fibrosis. Echocardiography. 2019 Jan;36(1):74-82.

Em outro, Goncalves et al demonstrou que o ponte de corte ≤ 1550 mmHg% de trabalho construtivo se associou com uma presença de fibrose miocárdica ≥ 15% na RM com sensibilidade de 91% e especificidade de 84%, enquanto que um SGL < 15% apresentou sensibilidade de 67% e especificidade de 76% para os mesmos ≥ 15% de fibrose miocárdica.

The International Journal of Cardiovascular Imaging
https://doi.org/10.1007/s10554-021-02186-3

Observação: lembrem-se que esta ferramenta é dependente da pós-carga e, portanto, a pressão arterial sistólica deve ser sempre mencionada para validar a aplicação do método.

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