A ecocardiografia é uma ferramenta útil e de fácil realização para avaliação do coração transplantado em várias etapas do transplante (Tx) cardíaco, desde o ato intraoperatório até avaliações seriadas no pós-operatório, além do controle de complicações após biopsias endomiocárdicas, acompanhamento na rejeição celular aguda e diagnóstico de isquemia por doença vascular do enxerto.
A normalização da função ventricular esquerda após a realização do Tx cardíaco é responsável pela melhora dos sintomas e apresenta um grande impacto no prognóstico.
Em indivíduos normais, mudanças na função ventricular cardíaca estão bem descritas por meio de valores de normalidade compilados em diversos estudos, contudo para os pacientes transplantados, ainda é escassa a informação sobre o desempenho normal do enxerto por evidências científicas limitadas nas pesquisas disponíveis.
Em publicação recente no ABC Cardiol, o grupo do Instituto de Cardiologia e Transplantes do Distrito Federal (ICTDF) avaliou 36 pacientes com menos de 01 ano de pós Tx cardíaco, sem rejeição (documentada através de biópsia endomiocárdica de vigilância), comparando com um grupo controle de 30 indivíduos saudáveis.
Foram estudados, prospectivamente, entre 2017 e 2019, pacientes adultos (>18 anos) que se encontravam no primeiro ano de pós TX. Os critérios de exclusão foram: (1) fração de ejeção do ventrículo esquerdo <53%, (2) reativação por Doença de Chagas, (3) rejeição celular aguda identificada por biópsia em algum momento do acompanhamento, (4) rejeição humoral, (5) ritmo cardíaco irregular, (6) doença vascular do enxerto confirmada, (7) janela acústica limitada e (8) aqueles que se recusaram a participar do estudo.
As variáveis ecocardiográficas analisadas foram a fração de ejeção do ventrículo esquerdo (VE) pelo método de Simpson, massa ventricular esquerda, função sistólica do ventrículo direito (VD) pelo TAPSE, velocidade da onda S e FAC, parâmetros de função diastólica e análise do strain miocárdico do VE, do ventrículo direito (VD) e trabalho miocárdico.
Na análise das características dos grupos, observou-se que a idade e o gênero não diferiram entre os transplantados e o grupo controle pelo teste de qui-quadrado. O grupo transplantado sem rejeição apresentou a medida da pressão arterial e frequência cardíaca mais alta e o grupo controle esteve com maior medida de peso, consequentemente, maior índice de massa corporal.
Quanto à presença de comorbidades, 8 transplantados (22,2%) eram portadores de hipertensão arterial sistêmica, 9 (25%) eram diabéticos, sendo a Doença de Chagas a etiologia mais frequente de insuficiência cardíaca (IC) pré-transplante, presente em 52% dos pacientes.
Os pacientes transplantados apresentaram uma medida maior do septo interventricular e da parede posterior, com consequente aumento da espessura relativa (ER) e massa ventricular. A fração de ejeção se manteve dentro da normalidade (FEVE 64,52±6,88%).
Em concordância com estudos envolvendo transplantados cardíacos, os dados deste estudo constataram remodelamento ventricular com aumento do índice de massa de VE e da ER. Badano et al. descreveram que durante os primeiros meses após o Tx cardíaco pode ocorrer aumento da massa ventricular esquerda e da espessura da parede, provavelmente causada por infiltração inflamatória celular e edema do enxerto.
Durante o seguimento, um aumento secundário da massa do VE e da espessura da parede pode ocorrer como consequência de múltiplos fatores como episódios repetidos de rejeição (ausente nos pacientes participantes deste estudo), taquicardia crônica, injuria isquêmica e hipertensão sistêmica, usualmente induzida por agentes imunossupressores.
Observou-se também um maior volume do átrio esquerdo, com média de 38,17 ml/m² (controle 18,98 ml/m2 , p<0,0001) e menor valor nas medidas de Doppler tecidual em relação ao grupo controle, apesar da técnica cirúrgica bicaval ter sido utilizada na totalidade dos pacientes transplantados, em contraste com a técnica biatrial, mais antiga e com característica de proporcionar átrios maiores.
A presença de átrios maiores, apesar da utilização da técnica bicaval, pode indicar uma desproporção entre o tamanho do enxerto do doador em relação ao receptor, resultando em um volume indexado maior ou até mesmo um endurecimento diastólico progressivo com aumento das pressões de enchimento causando disfunção diastólica e aumento atrial.
É importante ressaltar que as medidas que envolvem a função diastólica não puderam ser analisadas em mais de 50% dos transplantados devido a problemas técnicos (fusão de ondas), com possível perda de confiabilidade dos dados.
Na avaliação da função ventricular direita, observou-se onda S e TAPSE com valores inferiores para os transplantados, porém com FAC dentro da normalidade.
Houve redução significativa dos valores do strain pelo Speckle Tracking na comparação com o grupo de indivíduos saudáveis, abaixo dos valores de referência nos pacientes transplantados, tanto para o strain global longitudinal do VE (11,99±2,74 x 20,60% controle, p<0,0001 ) quanto para o strain de parede livre do ventrículo direito (16,67%, controle 25,50%, p<0,0001).
Os achados deste estudo foram concordantes com outras publicações que observaram valores de SGL reduzidos após o transplante, mesmo em pacientes sem rejeição. O procedimento cirúrgico e o remodelamento cardíaco, além da inflamação inicial, podem contribuir para a queda do SGL.
Os índices de trabalho miocárdico encontraram-se reduzidos nos pacientes transplantados. Os valores médios das variáveis índice de trabalho miocárdico, trabalho de eficiência global e trabalho construtivo global são significativamente menores para transplantados em relação ao grupo controle (p < 0.0001), sendo o trabalho desconstrutivo maior nos pacientes transplantados.
Estes dados corroboraram que o comportamento do coração transplantado, mesmo sem rejeição, apresenta uma performance reduzida com maior trabalho desperdiçado, tendo como hipótese alterações na dinâmica cardíaca já descritas após a cirurgia ou até mesmo pelo quadro inicial de inflamação.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.