Estenose Mitral Degenerativa: revisão

Por aqui já falamos sobre a etiologia degenerativa da insuficiência mitral (IMi). Então vamos, agora, falar um pouco sobre o outro extremo: estenose mitral (EMi) degenerativa ou calcífica.

Dado o aumento da expectativa de vida, as doenças valvares relacionadas à idade têm se tornado cada vez mais prevalentes. Neste cenário, podemos incluir a calcificação do anel mitral (MAC – mitral annular calcification), com prevalência estimada em 10% na população geral e de 22% daqueles que realizam um ecocardiograma (com aumento progressivo de acordo com a faixa etária avaliada), e a EMi degenerativa propriamente dita, que corresponde a 13% das causas de EMi (dados do European Heart Survey).

O processo se dá a partir da calcificação progressiva, que se inicia no anel fibroso da valva mitral, particularmente acometendo o anel posterior, com extensão para os outros elementos da valva mitral e aparelho subvalvar posteriormente. Acredita-se que 6-8% dos pacientes com MAC evoluem para EMi.

Por se tratar de um processo sistêmico, que envolve mecanismos compartilhados com o processo de aterosclerose, bem como se associa aos fatores de risco cardiovasculares clássicos, existe também uma correlação com estenose aórtica degenerativa, com essas patologias coexistindo em até 25% dos casos.

Doença renal crônica (DRC), histórico de radiação em região torácica e pacientes com aumento das pressões do ventrículo esquerdo (hipertensão arterial, miocardiopatia hipertrófica obstrutiva, estenose aórtica) são situações que aceleram o processo de calcificação e, portanto, aumentam o risco de MAC e EMi.  

Barros Filho et al.
Mitral Annular Calcification: Challenges and Particularities

O padrão habitual de evolução se inicia com a calcificação do anel posterior, com preservação da mobilidade dos folhetos valvares e sem impacto direto nas pressões do ventrículo esquerdo (VE). À medida que o processo se mantém, a calcificação se estende para os segmentos proximais dos folhetos e para a região comissural, começando a interferir na mobilidade dos folhetos da valva mitral.

Adaptado de AL‐TAWEEL et al.Echocardiography. 2019;00:1–9

Apesar de parecer um processo lógico, a calcificação pode ter um comportamento imprevisível, com potencial de progressão para diferentes regiões do aparato valvar. Se a calcificação ocorrer inferiormente e medialmente, pode inclusive envolver o miocárdio resultando em disfunção do sistema de condução cardíaco por acometimento do nó atrioventricular, por exemplo.

A calcificação pode progredir no sentido superior, adentrando na cavidade atrial, ou inferior, comprometendo o aparelho subvalvar, podendo causar lesões regurgitantes ou até ruptura de cordoalha (pelo aumento da tensão). Em situação extrema, pode haver desprendimento de focos de calcificação e embolização sistêmica (algo raro). 

Apesar dos poucos dados na literatura, a EMi degenerativa tem prognóstico desfavorável, com mortalidade em 5 anos com taxas superiores a 50%. Em outro estudo, 75% dos pacientes já eram sintomáticos à época do diagnóstico ecocardiográfico. Taxa de sobrevida livre de eventos nesses pacientes é de 53% em 01 ano e de 34% em 3 anos, com mortalidade de 54% no seguimento de 2.8 anos.

A avaliação ecocardiográfica pode ser um verdadeiro desafio, a depender do estágio da calcificação, levando a dificuldade técnica por janela acústica limitada e/ou distorção da anatomia valvar.

O gradiente transvalvar médio pode sofrer interferência de alguns fatores, levando a valores não confiáveis:

  • A restrição de mobilidade dos folhetos na EMi degenerativa, diferentemente do que ocorre na EMi reumática, se dá de forma predominante no anel valvar e segmento proximal/basal, fazendo com que a borda de coaptação dos folhetos tenha uma certa mobilidade.
  • Pacientes com EMi degenerativa habitualmente apresentam múltiplas comorbidades, como diabetes, HAS e doença arterial coronária. Situações essas que se associam a disfunção diastólica do VE, bem como a redução da complacência do átrio esquerdo (AE). Esta associação (disfunção diastólica + redução de complacência) pode resultar na elevação da onda V e, por consequência, do gradiente médio transvalvar. Por tanto, nestes casos, graus mais leves de estenose podem resultar em gradientes elevados.
  • A redução do volume sistólico final, comum nos pacientes idosos, com volumes diastólico finais pequenos e hiperterofia concêntrica, pode resultar em um gradiente médio subestimado. A própria excursão reduzida do anel valvar pode se relacionar à redução do stroke volume do VE.

A avaliação da área valvar pela medida do PHT tem recomendação grau I na etiologia reumático. Aqui, contudo, há uma tendência de prolongamento do tempo de desaceleração pela alteração do relaxamento e redução da complacência ventricular esquerda, fazendo com que este método tenha aplicação limitada nos pacientes com EMi degenerativa. Neste caso, o PHT usualmente está reduzido, resultando em uma área valvar superestimada.

Sud et al Degenerative Mitral Stenosis. Circulation April 19, 2016

A planimetria avaliada pela ecocardiografia 2D, à semelhança do que ocorre na estenose aórtica degenerativa, é desaconselhada em razão de janela acústica limitada. Já a ecocardiografia 3D consegue uma avaliação confiável na maioria dos casos.

Gregg S. Pressman, Degenerative Mitral Stenosis Versus Rheumatic
Mitral Stenosis, Am J Cardiol 2020;125:1536−1542

Na ausência de refluxo mitral ou aórtico (maiores que moderado), a equação de continuidade é o método de escolha para estimar a área valvar mitral. Quando na dificuldade para uma medida confiável da via de saída do VE (VSVE), o índice de Doppler (VTIvsve / VTImitral) pode ser usado.

Em estudo com 64 pacientes com EMi degenerativa, um índice de Doppler de 0.31 ± 0.04 se correlacionou com área valvar < 1 cm² e um índice de Doppler de 0.43 ± 0.07, com área valvar entre 1-1.5 cm².

Rev. Cardiovasc. Med. 2022; 23(10): 354

Quanto à graduação do grau de calcificação, existe um sistema proposto adaptado e associado à avaliação em conjunto com a tomografia computadorizada.

Adaptado de Silbiger, Journal of the American Society of Echocardiography
2021

Como observado, a avaliação desta condição realmente pode ser bastante desafiadora, sobretudo para se determinar se há, de fato, um grau importante de obstrução do fluxo mitral ou se o aumento do gradiente médio é em razão da complacência reduzida do AE e da disfunção diastólica do VE.

A avaliação do fluxo transvalvar com o Doppler pulsátil demonstrando uma relação E<A, com um tempo de desaceleração prolongado da onda E pode sugerir que o aumento do gradiente não é secundário pela complacência reduzida do AE.

A presença de gradiente médio > 8 mmHg associado a pressão sistólica do ventrículo direito ≥ 50 mmHg se associou com maiores taxas de mortalidade por todas as causas, independentemente das comorbidades associadas, apontando que pacientes com estes achados possam se beneficiar de algum tipo de intervenção invasiva.

No caso de dúvida, um estudo hemodinâmico pode ser indicado para definir a melhor estratégia terapêutica.

Dada todas essas possíveis interferências na avaliação do gradiente médio transvalvar, recomenda-se uma abordagem multiparamétrica e com combinação de diferentes métodos de imagem para uma avaliação confiável da gravidade da doença e definição de tratamento.

Lamberg et al, CASE: Cardiovascular Imaging Case Reports
Volume 7 Number 5
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