Alain Carpentier revelou, na Leitura de Honra do 63º Encontro Anual da Sociedade Americana de Cirurgia Torácica (Atlanta, 1983) seu célebre trabalho denominado “The French Correction” para cirurgia da valva mitral, no qual estabeleceu uma classificação baseada na morfologia e movimentação da valva mitral e não apenas na etiologia.
O motivo era a abordagem cirúrgica mais funcional e eficiente para reconstrução da valva mitral. Na sua curiosa descrição da equipe do Serviço de Cirurgia Cardíaca da Clinique Leriche, situada na Rive Gauche do Rio Sena, próximo ao Quartier Latin de Paris, Carpentier enumera: 5 cirurgiões “full-time”, um cirurgião “part-time”, 3 residentes Senior, 5 residentes, 7 residentes estrangeiros, 12 anestesiologistas, 7 cardiologistas “part-time”, 162 enfermeiras, 6 ovelhas e 200 ratos.
A classificação de insuficiência mitral de Carpentier é amplamente utilizada e recomendada em todos os guidelines sobre valvopatias. O propósito deste blog é auxiliar na interpretação dessa classificação.
No tipo I de Carpentier, insuficiência mitral com mobilidade dos folhetos e posição da valva mitral normais aparece, na forma primária, a perfuração valvar como única causa. Entende-se que esse tipo de alteração seja provocada por endocardite bacteriana sobre uma valva previamente normal. Essa condição não é muito frequente, mesmo em usuários de drogas ilícitas, cujas alterações ocorrem, em geral, nas valvas do lado direito do coração.
Já, na forma secundária do Tipo I temos a insuficiência mitral devida à dilatação atrial e a causada por cardiomiopatia não isquêmica.
No primeiro grupo podemos citar os pacientes com fibrilação atrial e dilatação da cavidade e os pacientes com disfunção diastólica que provoca aumento do volume atrial, aumentando o diâmetro do anel mitral, provocando falha de coaptação dos folhetos da valva, como ocorre, por exemplo, na cardiomiopatia restritiva idiopática.
No segundo grupo temos a causa mais frequente de insuficiência mitral secundária Tipo I: a cardiomiopatia dilatada, com insuficiência mitral devida à dilatação do anel mitral e perda gradativa da coaptação dos folhetos da valva mitral.
No Tipo II de Carpentier, temos a insuficiência mitral degenerativa, cujo protótipo é o prolapso da valva mitral, mas que apresenta um amplo espectro de alterações. Trata-se de uma doença primária da valva mitral que apresenta desde pequenas alterações na estrutura do folheto posterior medial (P2), denominada Disfunção Fibroelástica até formas que acometem toda a estrutura da valva mitral, denominada Síndrome de Barlow.
Nas formas mais simples, e mais frequentes, a Disfunção Fibroelástica e a Disfunção Fibroelástica Avançada acometem o folheto posterior medial da valva mitral (segmento P2), que pode se apresentar levemente espessado, com cordoalhas alongadas e, às vezes, com rotura, o que provoca diversos graus de insuficiência, em geral, de jato excêntrico. Acomete pacientes mais idosos com histórico de insuficiência mitral de longa data (>5 anos). Na Disfunção fibroelástica o anel mitral costuma apresentar dilatação discreta (<32 mm no eixo anteroposterior) e, na forma avançada, essa dilatação é maior, considerando-se um diâmetro anteroposterior >36 mm como importante.
O ecocardiograma 3D é muito útil na localização do folheto acometido.
Quando as alterações degenerativas acometem mais do que um segmento da valva mitral, temos a forma frustra (da doença de Barlow) e a forma mais extensa denominada Doença de Barlow ou forma completa. Nesses casos, depende da quantidade e extensão dos segmentos afetados, que apresentam-se espessados e redundantes, sendo mais frequente em pacientes mais jovens com histórico recente de insuficiência mitral. A ruptura de cordoalhas é mais frequente, assim como a dilatação do anel mitral e a calcificação de folhetos. A ecocardiografia permite identificar a extensão da degeneração, sendo particularmente útil o eco 3D.
O Tipo III de Carpentier divide-se em duas partes: Tipo IIIA, no qual a insuficiência mitral é primária, com restrição da mobilidade tanto na sístole como na diástole e o Tipo IIIB, no qual a insuficiência mitral é secundária. No Tipo IIIA as causas mais frequentes são a doença valvar reumática e a calcificação do anel mitral. As formas provocadas por drogas são muito menos frequentes, sendo relacionados a medicamentos usados contra a enxaqueca e a anorexígenos. Entre os medicamentos contra a enxaqueca foram identificados casos de espessamento de folhetos e insuficiência mitral com uso de metisergida (taxa de 3,6%) e ergotamina.
Seu mecanismo de ação seria pela semelhança com a serotonina, que provoca proliferação de fibroblastos, possível mecanismo dos espessamentos valvares. Com relação aos anorexígenos, por um mecanismo de ação semelhante aos derivados da ergotamina, a fenfluramina associada com fentermina é responsável por espessamento e insuficiências valvares, muitas delas requerendo a intervenção cirúrgica. A anatomia patológica, nesses casos, evidenciou proliferação de miofibroblastos. Estas drogas estão limitadas, atualmente, a casos graves de enxaqueca para os derivados da ergotamina e para casos de obesidade mórbida para os anorexígenos.
No Tipo IIIB de Carpentier, a insuficiência mitral é secundária a doença isquêmica. A região isquêmica provoca alongamento das cordoalhas de alguns segmentos da valva mitral, que “deslizam” sobre outros segmentos provocando falha de coaptação e subsequente refluxo. Este mecanismo é conhecido como “tethering”.
Desta forma, acreditamos ter esclarecido os mecanismos de insuficiência mitral desde o ponto de vista da classificação de Carpentier. Há outras formas de insuficiência mitral que não se encaixam nessa classificação, mas serão abordadas em outro blog.
É doutor em medicina, especialista em Cardiologia (SBC) e especialista em Ecocardiografia.
Curriculum completo disponível na Plataforma Lattes
(http://lattes.cnpq.br/4922446519082204)