Ecocardiograma de Estresse Físico: a arma secreta mais subutilizada na cardiologia brasileira (Parte I)

Em 1979, Mason et al, publicam o primeiro trabalho do emprego da ecocardiografia de estresse para a detecção de isquemia (1). O método empregado foi o exercício em bicicleta supina. A avaliação ecocardiográfica era limitada ao estudo do modo M no corte paraesternal longitudinal, analisando apenas dois segmentos (septo e parede posterior). Mesmo assim, o estudo demonstrou ser sensível em detectar alterações da motilidade parietal durante a isquemia induzida pelo exercício e que poderia ser utilizada em pacientes em que as alterações eletrocardiográficas fossem equívocas, ou quando o significado funcional da lesão coronariana fosse incerto.

Figura 1. Exemplo de ecocardiograma de estresse físico positivo ao modo M retirado do artigo original. À esquerda imagens em repouso. Observar o espessamento e motilidade simétrica de septo e parede ínferolateral. À direita em exercício. Durante a isquemia induzida nota-se tanto a redução do espessamento parietal quanto a redução da motilidade septal.

Apenas na década seguinte iniciaram os estudos com fármacos, sendo a dobutamina estudada na América do Norte e o dipiridamol na Europa. Desde então, o ecocardiograma de estresse farmacológico, particularmente com dobutamina, impera em nosso país. Existem diversas justificativas para tal. Muitos dos pioneiros do estresse nacional fizeram formação nos Estados Unidos e difundiram a técnica por aqui. Outra explicação é que o estresse com exercício é tecnicamente muito difícil, necessita de sala maior ou é necessário um investimento muito alto para montar um laboratório. 

Obviamente que fazer o exame com o paciente em decúbito lateral esquerdo, com menos hiperventilação e com imagens de maior qualidade é muito mais tentador para o ecocardiografista. Mas e para o paciente, o que é melhor? A balança pesa para o exercício por diversos motivos. É mais seguro, fisiológico, prático, rápido e apresenta a mesma acurácia (2,3). E automaticamente para a instituição também. Além dos fatores citados anteriormente a produtividade é maior, o paciente não necessita permanecer em observação no serviço e o custo com material e medicamentos é praticamente abolido.

Mas por quê ainda existe a resistência para o emprego do estresse físico em nossos laboratórios? Creio que é a dificuldade de sairmos da zona de conforto.  Em realidade para realizar o estresse físico é necessário desbloquear novas habilidades. É importante entender que podemos fazer o exame com o paciente em movimento, pedalando sentado e até caminhando na esteira (4,5,6). Após rompermos este paradigma um mundo de possibilidades se abre.  Nosso exame não se limita apenas a avaliação de isquemia. Podemos e devemos avaliar múltiplos parâmetros como função diastólica, reserva contrátil, válvulas, gradientes, ultrassonografia pulmonar e até fluxo coronário (7,8,9). Nossos aparelhos estão cada vez melhores, repletos de novas tecnologias que auxiliam muito no diagnóstico. Cada paciente tem uma queixa específica e um exame tão versátil quanto o estresse físico é capaz de responder vários questionamentos em poucos minutos

A escolha da modalidade de exercício vai depender de diversos fatores, variando desde a disponibilidade, custo, experiência e até preferência pessoal como conforto e facilidade na obtenção das imagens. De qualquer forma, o importante é seguir a máxima de que se o paciente é capaz de exercitar o estresse físico é o método preferencial.

Com os seguintes casos clínicos, espero demonstrar todo o potencial desta arma secreta que é tão subutilizada em nossos laboratórios.

CASO 1: Qual o papel da ecocardiografia de estresse quando a avaliação anatômica é insuficiente?

Mulher de 61 anos, dislipidêmica, com história familiar positiva para doença arterial coronária e assintomática. Angiotomografia de coronárias com lesão de 30 a 50% em tronco de coronária esquerda, mal caracterizada, sendo sugerido complementação com método funcional para avaliação do significado da lesão. Realizado ecocardiograma de estresse físico em bicicleta supina, suficiente, alcançando 98% da frequência máxima prevista para idade, duplo produto de 25840, 9.8 METs, boa capacidade funcional e sem alterações eletrocardiográficas sugestivas de isquemia.

O estudo foi negativo para isquemia, demonstrando boa reserva contrátil por fração de ejeção (FE) e por strain longitudinal global (GLS) definidos como incremento superior a 5 pontos absolutos na FE e 2 pontos absolutos no GLS no pico do esforço em comparação com o repouso(10). Os achados são bastante tranquilizadores não só por motilidade normal, mas também por uma boa capacidade funcional e ausência de sintomas em alta carga de esforço. A taxa de eventos relacionado a um teste negativo é inferior a 1% ao ano. A paciente segue em acompanhamento regular no serviço e com boa evolução

Clipe 1: Imagens de repouso demonstrando contratilidade global e regional normal com boa função contrátil.
Clipe 2: Corte apical 4 câmaras, repouso, baixa carga de esforço e esforço máximo demonstrando ausência de novo transtorno de contratilidade e incremento da função contrátil ao exercício.
Clipe 3: Corte apical 2 câmaras, repouso, baixa carga de esforço e esforço máximo demonstrando ausência de novo transtorno de contratilidade e incremento da função contrátil ao exercício.
Clipe 4: Corte apical 3 câmaras, repouso, baixa carga de esforço e esforço máximo demonstrando ausência de novo transtorno de contratilidade e incremento da função contrátil ao exercício.
Figura 2: Fração de ejeção em repouso 66% e no pico do esforço de 73%. Observa-se reserva contrátil (incremento superior a 5 pontos absolutos na fração de ejeção).
Figura 3: Strain longitudinal global (GLS) em repouso 22,4% e no pico do esforço de 25,4%. Observa-se reserva contrátil (incremento superior a 2 pontos absolutos no GLS). Além disso, nota-se o incremento do strain apical em mais de dois pontos absolutos sugerindo boa circulação no território da artéria descendente anterior (11).

DICA PRÁTICA: Lesão de tronco com repercussão funcional geralmente provoca isquemia extensa e em baixa carga ao estresse. Dilatação ventricular e queda de fração de ejeção são achados frequentes. O teste deve ser realizado com bastante atenção e na presença de isquemia inequívoca em mais de dois segmentos é recomendado interromper o exame prontamente.

CASO 2: Nova regurgitação mitral ao esforço: marcador prognóstico ou diagnóstico?

Homem de 60 anos, hipertenso, dislipidêmico, antecedente de acidente vascular encefálico isquêmico (sem sequela motora) encaminhado para o estresse para investigação de dor torácica. Imagens de repouso evidenciando hipocinesia médio basal inferior e fração de ejeção preservada. Realizado ecocardiograma de estresse físico em bicicleta supina, sendo interrompido em baixa carga de esforço por angina típica. Alcançou 71% da frequência máxima prevista, 4,9 METs, baixa capacidade funcional e sem alteração eletrocardiográfica sugestiva de isquemia.

Clipe 5: Imagens de repouso demonstrando hipocinesia médio basal inferior.

Na carga de 50 Watts iniciou com angina leve. No entanto, não foi identificada nova alteração de contratilidade regional inequívoca (clipe 6).

Clipe 6: Corte apical 4 câmaras em repouso, baixa carga e início de angina. Ausência de isquemia inequívoca ao esforço.

Adicionalmente à avaliação de motilidade, foi estudado o comportamento do Doppler colorido mitral sendo identificado nova regurgitação (clipe 7). 

Clipe 7: Observa-se nova regurgitação mitral durante o episódio anginoso em comparação ao repouso.

Na etapa seguinte do exercício, observa-se clara isquemia anterolateral (clipe 8). A particularidade deste caso é que a angina precedeu à alteração de contratilidade regional, contrariando a cronologia da “cascata isquêmica”.

Clipe 8: Corte apical 4 câmaras em repouso, baixa carga e início de angina e 75 W (esforço máximo). Observa-se clara isquemia anterolateral.

A prova foi informada como positiva para isquemia miocárdica no território de artéria circunflexa de elevado risco ecocardiográfico. O paciente permaneceu sintomático, apesar do tratamento clínico, e foi submetido a cinecoronariografia evidenciando múltiplas lesões coronárias sendo optado por revascularização cirúrgica.

DICA PRÁTICA: A detecção de nova insuficiência mitral ou agravo da pré-existente em repouso, durante a ecocardiografia de exercício está relacionado a pior prognóstico e maior taxa de eventos futuros (12). É um parâmetro bastante simples e prático de ser incorporado ao estudo convencional. Além de adicionar informação do ponto de vista prognóstico, adiciona informação do ponto de vista diagnóstico. Ela ocorre classicamente em duas situações: na isquemia extensa e na isquemia no território da artéria circunflexa

CASO 3: Parâmetros adicionais durante a ecocardiografia de estresse: essencial ou dispensável?

Homem de 76 anos, com doença coronária estabelecida e com antecedente de angioplastias prévias (sem os laudos dos procedimentos), vem encaminhado para o ecocardiograma de estresse físico devido a dispneia de esforço. Em uso de betabloqueador (não interrompido antes do estudo). Realizado ecocardiograma de estresse físico em bicicleta supina, alcançando apenas 73% da frequência máxima prevista para idade.  Imagens de pico de qualidade limitada por hiperventilação e interrupção súbita do esforço devido à intensa dispneia.

Clipe 9 Corte apical 4 câmaras em repouso, baixa carga e pico do esforço. Qualidade limitada das imagens.
Clipe 10 Corte apical 2 câmaras em repouso, baixa carga e pico do esforço. Qualidade limitada das imagens.

Além da avaliação da motilidade parietal, foi estudado o comportamento da regurgitação mitral ao estresse. Observou-se nítida intensificação da insuficiência mitral durante o teste (discreta em repouso e moderada ao esforço). Outro parâmetro fundamental neste caso foi o aparecimento de numerosas linhas B à ecografia pulmonar, refletindo edema intersticial alveolar agudo.

Clipe 10. Doppler colorido mitral em repouso e pós esforço imediato evidenciado agravo da regurgitação mitral.
Clipe 11. Ecografia pulmonar em quatro campos pulmonares no pós esforço imediato. Observa-se numerosas linhas B indicando edema intersticial pulmonar.

Mesmo com a avaliação da motilidade parietal prejudicada, o teste foi informado como positivo por agravo da regurgitação mitral e edema pulmonar intersticial. Os sintomas foram reproduzidos em baixo nível de esforço. Foi optado por estratificação invasiva e a coronariografia demonstrou múltiplas lesões coronárias com necessidade de revascularização cirúrgica

A adição de múltiplos parâmetros foi crucial para o manejo deste caso. Se por um lado a avaliação da motilidade foi duvidosa ou inconclusiva, o agravo da regurgitação mitral e a detecção de linhas B ao US pulmonar juntamente com a reprodução dos sintomas que motivaram o teste, foram determinantes para a definição da conduta clínica. Estes achados tem importância prognóstica independente e estão associados a maior taxa de eventos futuros (12,13).

DICA PRÁTICA: A reprodução dos sintomas ao exercício associado a alterações ecocardiográficas como nova e/ou agravo de regurgitação mitral pré-existente, aparecimento de linhas B à ecografia pulmonar e/ou aumento da relação E/e’ septal são de extrema valia durante o teste (14). Nem só de pesquisa de isquemia vive a ecocardiografia de estresse. Podemos e devemos utilizar toda a versatilidade da ecocardiografia durante o nosso exame.

Ideias para recordar:

  • O estresse físico é a modalidade de escolha sempre que possível;
  • A capacidade funcional é um dado de extrema relevância clínica;
  • O ecocardiograma de estresse físico está indicado não só para avaliação de dor torácica em pacientes com doença coronária conhecida e/ou suspeitada, mas também para a avalição da repercussão de lesões coronárias de significado incerto;
  • A avaliação da reserva contrátil é uma etapa importante do exame;
  • Estudo suficiente, negativo, com boa capacidade funcional está associado a baixa taxa de eventos futuros;
  • A avaliação de múltiplos parâmetros, além da motilidade parietal, adiciona informação tanto do ponto de vista prognóstico quanto diagnóstico;
  • O exercício possibilita a avaliação objetiva dos sintomas.
  • A ecocardiografia de estresse com exercício é de grande valor para a tomada de decisão clínica.

Postagem realizada pelo Dr. Issam Shehadeh (editor do perfil @ecoestresse no Instagram):

  • Graduado em Medicina pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel).
  • Residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário São Francisco de Paula – HUSFP (UCPel) e em Cardiologia pela Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
  • Pós-graduado em Ecocardiografia pela Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
  • Títulos de especialista em Cardiologia e Ecocardiografia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e Departo de Imagem Cardiovascular DIC/SBC.

Referências Bibliográficas:

1 Mason SJ et al. Exercise echocardiography: detection of wall motion abnormalities during ischemia. Circulation. 1979 Jan;59(1):50-9. doi: 10.1161/01.cir.59.1.50. PMID: 758124.

2 Virani SS et al. 2023 AHA/ACC/ACCP/ASPC/NLA/PCNA Guideline for the Management of Patients With Chronic Coronary Disease: A Report of the American Heart Association/American College of Cardiology Joint Committee on Clinical Practice Guidelines. Circulation. 2023 Aug 29;148(9):e9-e119. doi: 10.1161/CIR.0000000000001168. Epub 2023 Jul 20. Erratum in: Circulation. 2023 Sep 26;148(13):e148. doi: 10.1161/CIR.0000000000001183. Erratum in: Circulation. 2023 Dec 5;148(23):e186. doi: 10.1161/CIR.0000000000001195. PMID: 37471501.

3 Vrints C et al. 2024 ESC Guidelines for the management of chronic coronary syndromes. Eur Heart J. 2024 Sep 29;45(36):3415-3537. doi: 10.1093/eurheartj/ehae177. PMID: 39210710.

4 Peteiro J et al. Comparison of peak and postexercise treadmill echocardiography with the use of continuous harmonic imaging acquisition. J Am Soc Echocardiogr. 2004 Oct;17(10):1044-9. doi: 10.1016/j.echo.2004.06.002. PMID: 15452469.

5 Peteiro J et al. Prognostic value of peak and post-exercise treadmill exercise echocardiography in patients with known or suspected coronary artery disease. Eur Heart J. 2010 Jan;31(2):187-95. doi: 10.1093/eurheartj/ehp427. Epub 2009 Oct 12. PMID: 19825812.

6 Peteiro J et al.  (2024). Ecocardiografía de ejercicio: Un protocolo en dos fases. Revista de Ecocardiografía Práctica y Otras Técnicas de Imagen Cardíaca. 7. 1-10. 10.37615/retic.v7n2a2.

7 Picano et al.  The new clinical standard of integrated quadruple stress echocardiography with ABCD protocol. Cardiovasc Ultrasound. 2018 Oct 2;16(1):22. doi: 10.1186/s12947-018-0141-z. PMID: 30285774; PMCID: PMC6167852.

8 Picano E et al.  Sustainability and Versatility of the ABCDE Protocol for Stress Echocardiography. J Clin Med. 2020 Sep 30;9(10):3184. doi: 10.3390/jcm9103184. PMID: 33008112; PMCID: PMC7601661.

9 Picano E et al. The clinical use of stress echocardiography in chronic coronary syndromes and beyond coronary artery disease: a clinical consensus statement from the European Association of Cardiovascular Imaging of the ESC. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2024 Jan 29;25(2):e65-e90. doi: 10.1093/ehjci/jead250. PMID: 37798126.

10 Lancellotti P et al. The clinical use of stress echocardiography in non-ischaemic heart disease: recommendations from the European Association of Cardiovascular Imaging and the American Society of Echocardiography. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2016 Nov;17(11):1191-1229. doi: 10.1093/ehjci/jew190. Erratum in: Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2017 May 1;18(8):832. doi: 10.1093/ehjci/jex040. PMID: 27880640.

11 Caniggia C et al. Factibilidad y aportes del análisis de la deformación longitudinal 2D global y regional durante el eco estrés con ejercicio. Rev Argent Cardiol 2014;82:89-90.  

12 Peteiro J. et al. Prognostic Value of Mitral Regurgitation Assessment During Exercise Echocardiography in Patients with Known or Suspected Coronary Artery Disease. J Am Soc Echocardiogr. 2006 Oct;19(10):1229-37. doi: 10.1016/j.echo.2006.04.039. PMID: 17000361.

13 Ciampi Q et al. Prognostic value of stress echocardiography assessed by the ABCDE protocol. Eur Heart J. 2021 Oct 1;42(37):3869-3878. doi: 10.1093/eurheartj/ehab493. PMID: 34449837; PMCID: PMC8486488.

14 Peteiro J et al. Additive prognostic and diagnostic value of diastolic exercise parameters in patients referred for exercise echocardiography. European Heart Journal  J Cardiovscular Imaging, 2022 Dec 19;24(1):108-118. doi: 10.1093/ehjci/jeac039. PMID: 35175338.





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