As doenças cardiovasculares continuam sendo uma importante causa (não obstétrica) de mortalidade materna e o diagnóstico destas condições durante a gestação pode ser desafiador.
Aqui temos dois cenários possíveis: (1) mulheres com condições previamente conhecidas e que podem ter o curso da doença alterado pela gestação ou (2) condições patológicas sendo diagnosticadas durante a gravidez.
Como a ecocardiografia é uma modalidade de exame segura e acessível durante a gestação, acaba ganhando protagonismo e, portanto, devemos ter amplo conhecimento sobre como avaliar essas pacientes.
Antes de qualquer coisa, temos que entender as alterações fisiológicas que ocorrem em razão da gravidez e como elas podem se apresentar ecocardiograficamente.
De uma forma geral, a gestação é um período marcado por alterações hemodinâmicas significativas e que ocorrem em um intervalo de tempo curto. Há notadamente um aumento do débito cardíaco, de forma precoce e progressiva, resultado do aumento aproximado de 40-50% do volume sanguíneo (o estrogênio contribui para expansão do volume plasmático) e da frequência cardíaca (aumento médio de 10-20 batimentos por minuto em relação ao estado pré-gravídico), atingindo seu valor máximo entre o segundo e terceiro trimestres.
O aumento da pré-carga e do volume sistólico ejetado são os fatores preponderantes para o aumento do débito cardíaco no primeiro trimestre e o aumento da frequência cardíaca entra como fator determinante no segundo trimestre.
De forma concomitante, há um aumento da massa eritrocitária, porém de forma não proporcional ao aumento plasmático, resultando na anemia fisiológica da gravidez.
Também ocorre uma redução da resistência vascular sistêmica em razão da maturação da placenta (baixa resistência), podendo resultar em queda da pressão arterial média já nas fases iniciais da gestação, entrando numa fase de platô por volta da 24ª semana e, a partir daí, há mudança desse padrão, com aumento gradual da resistência venosa.
Após o parto e a dequitação, há rápido aumento resistência vascular sistêmica, com normalização (padrão pré gravídico) por volta de duas semanas de pós parto.
Diante destas mudanças, há naturalmente uma série de sintomas decorrentes das alterações hemodinâmicas fisiológicas, mas que podem se sobrepor e, por consequência, ser confundidos como manifestação inicial de alguma doença cardiovascular (por exemplo: dispneia por hiperventilação).
Quanto à realização do ecocardiograma, vale lembrar que a posição supina (decúbito dorsal) pode ser desconfortável e interferir na hemodinâmica da paciente pela compressão da veia cava inferior e das veias pélvicas pelo útero gravídico, particularmente após a 20º semana de gestação. Já ao final da gestação, o débito cardíaco pode sofrer ainda mais interferência, estando reduzido em até 14% quando em decúbito dorsal comparado com o decúbito lateral esquerdo (aproximadamente 8% das pacientes podem, inclusive, apresentar hipotensão sintomática quando em decúbito dorsal).
E quais seriam os achados considerados normais durante a gravidez?
O aumento do volume plasmático pode resultar em dilatação das câmaras cardíacas, porém habitualmente não ultrapassando os valores de normalidade.
Pode haver uma hipertrofia excêntrica do ventrículo esquerdo (VE) reversível, com aumento de aproximadamente 5-10% da massa ventricular, em razão do aumento do diâmetro diastólico final do VE e da espessura dos septos e parede posterior.
Os efeitos da gravidez na contratilidade miocárdica são controversos e, de forma geral, a fração de ejeção do VE permanece inalterada (ou pode até mesmo aumentar).
A maioria dos estudos não identificou alteração significativa da fração de ejeção do VE, contudo, em algumas séries, foi observada uma redução na contração das fibras circunferenciais, podendo implicar redução da contratilidade miocárdica intrínseca, sobretudo no terceiro trimestre. A avaliação da fração de ejeção do VE pelo ecocardiograma 3D pode mostrar uma redução leve nos últimos três meses de gestação.
Na gestação, o desenvolvimento de trabeculações excessivas, de forma reversível, é observado em um número considerados de mulheres (sem doença cardíaca estabelecida), em resposta ao aumento da pré carga. O que se observa é uma regressão, total ou parcial, das trabeculações nas 12 semanas subsequentes ao parto. Este tipo de adaptação é visto mais frequentemente em mulheres negras (3x mais), quando comparadas com mulheres caucasianas, sugerindo uma susceptibilidade genética associada
Da mesma forma, não é esperada mudança na função diastólica do VE, com a relação E/e´ permanecendo sem alteração. Pode existir um aumento de velocidades das ondas E e A do fluxo transmitral pelo aumento da pré-carga e volume plasmático. Como o aumento da velocidade da onda A (pelo aumento da contratilidade atrial) é maior que a da onda E, a relação E/A pode estar reduzida durante a gravidez, voltando ao normal por volta do segundo mês pós-parto.
O ventrículo direito (VD) pode também ter aumento do seu diâmetro pelo aumento da pré-carga.
Em razão de uma redução fisiológica da capacitância vascular pulmonar, a pressão sistólica do ventrículo direito não se altera, apesar do aumento do volume plasmático. Um padrão de pseudodiscinesia pode ser observado pela compressão extrínseca do útero gravídico em alguns casos.
O aumento das câmaras cardíacas associado ao aumento do volume sanguíneo pode resultar em dilatação anular, podendo aumentar regurgitações valvares (mais comumente observadas nas valvas tricúspide e pulmonar), assim como as velocidades dos fluxos transvalvares. Isso ocorre de forma mais predominante no início do terceiro trimestre de gestação e durante o trabalho de parto, voltando à normalidade já nas fases iniciais do puepério.
O tamanho do átrio esquerdo aumenta gradualmente durante todo o período gestacional, contundo se mantendo ainda dentro dos parâmetros de normalidade. Há um aumento das funções de reservatório e de bomba, pela análise do strain do AE, com redução da função de conduto.
Apesar da possibilidade de haver aumento da raiz de aorta, o refluxo valvar aórtico não é considerado um achado normal da gestação.
Derrame pericárdico (habitualmente de grau leve) é comum e ocorre em aproximadamente 40% das gestações, sobretudo no terceiro trimestre. A retenção hídrica mediada pelas alterações hormonais da gestação é o mecanismo responsável e dificilmente haverá sintoma relacionado ao derrame. Por volta da sexta semana pós parto é esperada resolução completa.
Na prática clínica, existem escores de risco utilizados em mulheres com condições cardiovasculares já estabelecidas que direcionam o acompanhamento pré-natal.
Já posicionamento da Sociedade Brasileira de Cardiologia para Gravidez e Planejamento Familiar na Mulher Portadora de Cardiopatia traz como preditores de eventos adversos neonatais os seguintes achados:
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.