A hora e a vez da trabeculação excessiva. Um verdadeiro “calo no pé” do ecocardiografista que trabalha com atletas. Dentro da zona cinzenta, talvez este seja um dos cenários mais desafiadores, uma vez que além do padrão adaptativo, a dita “não compactação” ainda é uma cardiopatia relativamente recente e que necessita de um aprofundamento em relação ao seu entendimento de uma forma mais ampla.
Ainda, no contexto do uso abusivo de esteroides anabolizantes, é frequente a observação de trabeculação excessiva do ventrículo esquerdo, de forma predominante na região apical, sendo, portanto, um indicativo de progressão do dano miocárdico.
E para complicar ainda mais a nossa vida, pode chegar até você um paciente atleta que pode ter perfeitamente um padrão adaptativo com trabeculação excessiva do ventrículo esquerdo (VE), contudo com uso concomitante de esteroides anabolizantes. E aí, a trabeculação excessiva seria pela atividade física ou pelo dano induzido em razão do uso hormonal suprafisiológico ???

Em adultos, a trabeculação excessiva do ventrículo esquerdo é caracterizada por trabéculas proeminentes, com recessos intertrabeculares profundos e uma camada compactada epicárdica mais fina. Em alguns indivíduos, essas alterações são associadas com piora progressiva da função sistólica, arritmias ventriculares e complicações tromboembólicas.
De etiologia ainda imprecisa, um atraso no desenvolvimento intrauterino já foi postulado como uma possível causa, contudo algumas mutações em genes relacionados à cardiomiopatias familiares já foram documentadas, como de proteínas sarcoméricas, disco-Z, citoesqueleto e envelope nuclear.
O fenótipo estrutural pode ser estimulado por condições adquiridas, ou seja gatilhos, que se associam ao aumento da pré-carga, como por exemplo regurgitação valvar significativa, anemia, gestação ou pela atividade física de alta intensidade.
No contexto da cardiologia do esporte, a trabeculação excessiva do VE pode ser observada em até 8% dos atletas e geralmente não apresenta nenhum impacto negativo na dinâmica cardiovascular.

Contudo, deve-se considerar a possibilidade de um atleta apresentar cardiomiopatia quando na presença de sintomas cardiovasculares, histórico familiar de não compactação, alterações eletrocardiográficas não relacionadas à atividade física (onda T invertida nas derivações inferolaterais, por exemplo), disfunção ventricular esquerda com fração de ejeção < 45%*, presença de uma camada compactada com < 5 mm de espessura** ao final da diástole ou disfunção diastólica.
*A diretriz do ESC aponta um valor de corte <50% para caracterizar disfunção ventricular, pela medida da fração de ejeção, no diagnóstico do fenótipo patológico da trabeculação excessiva.
**Pela mesma diretriz, o valor de 5 mm faz referência à medida realizada pela ressonância magnética, enquanto que pela ecocardiografia, o ponto de corte seria de 8 mm (durante a sístole). No presente documento, subentende-se que essa medida de 5 mm é pela análise ecocardiográfica.

Nessas situações a avaliação pela ressonância magnética cardíaca é recomendada e tem o valor adicional de detectar fibrose miocárdica ou trombos. Ainda, na presença de disfunção sistólica, a realização da ecocardiografia com esforço físico pode caracterizar a presença ou ausência de reserva contrátil, bem como descartar arritmias ventriculares durante o esforço.
Apesar de não citar no texto sobre o uso de técnicas avançadas como strain e trabalho miocárdico, o documento exemplifica um caso sugerindo complementação diagnóstica por provável fenótipo patológico utilizando um strain longitudinal com padrão heterogêneo e com valor global < 15%.

O posicionamento do DIC sobre a utilização do strain faz menção a um estudo que comparou pacientes portadores de não compactação com indivíduos com cardiomiopatia hipertrófica. O grupo com não compactação apresentou maior redução do strain longitudinal na região apical (12,12 ± 6,25 x 18,37 ± 3,67, p < 0,05).
Ainda, uma análise que julgo crucial nesses pacientes é em relação ao strain circunferencial e rotação apical. Em torno de 50% dos casos, aqueles com fenótipo patológico apresentam rotação em corpo rígido, ou seja, com rotação no sentido horário tanto da base quanto do ápice, perdendo o mecanismo habitual de rotação e, por consequência, eficiência mecânica.



Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN) e em Cardiologia pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.