As ditas provas de “ultra-endurance” são sabidamente responsáveis por uma espécie de fadiga miocárdica durante e logo após as provas, induzidas pela injúria miocárdica pelo exercício físico de alta intensidade mantido por longos períodos.
Aqui no blog já resumimos um artigo que avaliou, através de ecocardiografia, participantes de uma ultra maratona em trilha antes, durante e após a prova, e documentou, com a análise do strain, disfunção ventricular temporária nesta população.
Como disse, essa alteração apresenta um comportamento reversível, porém até quanto tempo após uma prova devemos esperar que haja esse padrão de disfunção ???
Foi o que tentou avaliar este estudo, não tão recente, mas que merece ser citado para entendermos um pouco mais sobre o mundo da cardiologia esportiva. Em particular, a compreensão das alterações miocárdicas “pós-provas” é de crucial importância dada a possível associação entre exercícios de altíssimas intensidade, como as ulta-maratonas, com uma maior predisposição a arritmias malignas (e até morte súbita).
Neste estudo foram avaliados 27 atletas (20 homens, 7 mulheres) que competiram o Australian Ironman Ultra-endurance Triathlon no ano de 2004 cuja duração foi composta por 3.8 Km de natação, 180 Km de ciclismo e 42.2 km de corrida à época.
Só para se ter uma ideia de como o esporte evoluiu, atualmente o Australian Ironman Ultra-endurance Triathlon consiste numa prova de 03 dias de duração, percorrendo 515 divididos em 10 Km de natação e 140 Km de ciclismo no primeiro dia, 281,1 Km de ciclismo no segundo e 84,3 Km de corrida no terceiro e último dia de prova !!!
As avaliações ecocardiográficas foram realizadas em 03 momentos distintos: (1) pré – duas semanas antes da prova; (2) pós – imediatamente após o evento; e (3) tardia – 01 semana após a prova. Além da análise ecocardiográfica, foram também realizadas dosagens de BNP e troponina (cTnI).
O tempo médio de conclusão da prova, entre os participantes do estudo, foi de 10 horas e 50 minutos e não houve relatos sobre sintomas cardíacos durante a ultra maratona.
A análise laboratorial demonstrou um aumento leve da troponina em 03 participantes na fase “pré” e indetectável nos demais. Após a prova, houve um aumento significativo de atletas com troponina detectável (11.5% x 57.7%, P < 0.001). A magnitude do aumento da troponina na fase “pós” foi significativa.
Em relação ao BNP, houve aumento em todos os atletas avaliados, com diferença significativa entre os valores nas fases “pré” e “pós”.
Quanto à análise ecocardiográfica, os parâmetros basais (fase “pré”) demonstraram função biventricular preservada com exceção de um único atleta, que apresentou hipocinesia em um segmento de uma única parede do ventrículo esquerdo (VE), porém com todos os parâmetros de função sistólica normais.
Após a prova, 26.9% dos participantes passou a apresentar déficit contrátil segmentar (média de 6.3 segmentos anormais nos 07 atletas com déficit contrátil), porém sem respeitar território coronário específico.
Houve uma redução de 10.7% no strain e com tendência para uma fração de ejeção reduzida avaliada pelo método de Simpson (P = 0.09). Os parâmetros de função diastólica não sofreram alterações na fase “pós”.
Quando analisados de forma isolada, estes 07 participantes que apresentaram déficit contrátil segmentar, a disfunção sistólica foi documentada através de uma redução de 20.6% da fração de ejeção do VE, 29% do strain e de 18.5% do strain rate. Neste grupo, houve piora da função diastólica, com redução do strain rate diastólico da onda E de 32.6% indicando disfunção precoce, enquanto que os parâmetros convencionais (E/A, e´ e E/e´) não se modificaram.
A avaliação funcional do ventrículo direito (VD) mostrou que todos os atletas apresentavam função preservada antes da prova. Já após a ultra maratona houve uma diminuição significativa dos parâmetros de função, demonstrada tanto pelo TAPSE (2.1 cm x 1.91 cm x 2.4 cm) como pelo FAC (47% x 39% x 45%).
A redução do FAC pode ser justificada pelo aumento da área sistólica do VD na fase “pós”. A redução do FAC (38%, p = 0.001) e do TAPSE (21%, p = 0.03) foi maior entre aqueles pacientes que apresentaram déficit contrátil segmentar do VE.
Já na fase tardia, ou seja, 01 semana após a prova, houve uma melhora do padrão de disfunção, com os parâmetros de função sistólica retornando ao que foi observado nas avaliação antes da prova.
Não houve diferenças significativas nos valores de troponina e BNP entre as fases “pré” e “tardia” de avaliação, bem como das medidas de função sistólica do VE e do VD.
Embora o padrão tenha sido de uma total recuperação na fase tardia, um atleta desenvolveu alterações crônicas do VD (dilatação e hipocinesia, além de manutenção da redução da FAC: 42% x 19% x 22%; e do TAPSE: 1,8 x 1,1 x 1,1 cm). Neste participante, houve recuperação total do déficit contrátil segmentar (0/16 segmentos na fase “pré”, 11/16 segmentos na fase “pós” e 0/16, na fase tardia).
Uma avaliação complementar deste atleta não evidenciou doença arterial coronária ou miocardite. Nova avaliação ecocardiográfica realizada 12 meses após a prova mostrou manutenção do padrão de alteração (funcional e estrutural) do VD.
As alterações ecocardiográficas nos parâmetros de função sistólica se correlacionaram com as alterações de troponina e BNP. Da mesma forma, a presença de déficit contrátil se correlacionou de forma consistente com alteração da troponina (r = 0.77, p < 0.001) e do BNP (r = 0.70, p < 0.001). O mesmo foi observado com o strain e strain rate.
Esse estudo demonstra a presença de injúria miocárdica após exercício físico intenso e prolongado e traz 03 pontos importantes: (1) a disfunção miocárdica é transitória, (2) o strain e strain rate são parâmetros sensíveis e (3) a disfunção do VD também está presente neste contexto.
Quer entender um pouco mais sobre esse processo de fadiga/disfunção induzido por atividade física de alta intensidade e prolongada ? É só entrar na sessão de ecocardiografia aqui do Blog e encontrar algumas postagens sobre o tema …
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN) e em Cardiologia pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) e é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.