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Ecocardiografia do Esporte: endurance e fibrilação atrial

Atletas de endurance, sobretudo maratonistas, apresentam uma prevalência aumentada de fibrilação atrial (FA), muito provavelmente em razão do remodelamento cardíaco induzido pela atividade física de alta intensidade relacionado a especificidade deste tipo de treino. Como assim ???

European Heart Journal – Cardiovascular Imaging (2020) 21, 1374–1383

Comparado com o sedentarismo, a atividade física em níveis moderados reduz o risco de fibrilação atrial e estudos já documentaram que mesmo um curto período de treinamento de endurance já pode ser suficiente para a redução desse risco. Por outro lado, e de forma paradoxal, já está bem descrito na literatura uma maior incidência de FA em atletas de endurance (previamente saudáveis) sugerindo que a alta intensidade nesse tipo de estímulo pode ser fator de risco para o desenvolvimento de FA.

J. Cardiovasc. Dev. Dis. 202411(10), 315;

Uma associação dependente de intensidade e duração de treino ao longo do tempo e FA foi demonstrada em estudo com 3500 em atletas de endurance, com idade ≥ 53 anos, na Noruega em que o risco de desenvolver FA aumenta 16% a cada década de treino regular. E por qual razão isso acontece em atletas de endurance ???

BMJ Open Sport Exerc Med. 2023 Apr 11;9(2):e001541

Durante o exercício aeróbico, há um aumento significativo da pré-carga em razão do aumento do retorno venoso pelo recrutamento da musculatura dos membros inferiores que, associada à ativação simpática induzida pelo estresse físico e consequente aumento da força contrátil do coração, resultam em uma sobrecarga volumétrica e aumento do débito cardíaco.

Conteúdo do acervo do Grupo ECOPE

Essa sobrecarga volumétrica vai gerar uma maior distensão das câmaras cardíacas que, por sua vez, através do mecanismo de Frank Starling (↑ distensão por aumento do volume diastólico final → ↑ força de contração → ↑ débito cardíaco) contemplará o aumento da demanda sistêmica em razão do estresse relacionado ao esforço físico.

Tudo isso resultará em um padrão de adaptação caracterizado por aumento das câmaras cardíacas e baixa resistência periférica.

A particularidade dos atletas de endurance é que eles mantêm esse status hemodinâmico por períodos prolongados (afinal, não se completa uma maratona em 40 minutos) e habitualmente um maratonista, seja ele amador ou profissional, acaba realizando várias provas durante o ano. Portanto, esse estímulo mantido durante longos períodos trará outras consequências metabólicas e hemodinâmicas que, por sua vez, podem ser deletérias ao longo do tempo.

Conteúdo da Plataforma Echoplay Academy

Então, diante de um indivíduo atleta de endurance e que apresenta um episódio de FA, qual seria a melhor estratégia do ponto de vista de orientação sobre atividade física ?

Com frequência a orientação dada é a de reduzir a quantidade (carga) e intensidade de treinos, sendo uma espécie de “destreino”. Isso se baseia na ideia de que o estímulo resultante do exercício de alta intensidade e prolongado atua como fator determinante para o desenvolvimento da arritmia e que a continuidade desse estímulo poderá levar a um processo contínuo de remodelamento cardíaco, levando à progressão da doença. Apesar desse racional teórico, poucos estudos avaliaram a eficácia dessa estratégia.

O grande “x da questão” é que, enquanto as adaptações do ventrículo esquerdo (VE) tendem a regredir com o destreino, o mesmo não acontece, pelo menos de forma similar, com o remodelamento do átrio esquerdo (AE). Então seria essa uma estratégia realmente eficaz?

BMJ Open Sport Exerc Med. 2023 Apr 11;9(2):e001541

Estudo randomizado, multicêntrico, com participação de 17 centros de 03 diferentes países (Noruega, Austrália e Bélgica) com 120 indivíduos atletas de endurance com episódio de FA documentada. O estudo dividiu os participantes em dois braços: intervenção – mudança de treino; e controle – manutenção de programa de treinamento de alta intensidade. O protocolo de avaliação durou 16 semanas.

Na fase inicial do estudo, todos os atletas foram monitorados durante 04 semanas de forma contínua (através de insertable cardiac monitor – dispositivo sem fio implantado no subcutâneo com conexão através de Bluetooth com aplicativo de smartphone), seguindo a rotina habitual de treinamentos. Já em um segundo momento (semana 5), os participantes foram avaliados com ecocardiograma, teste cardiopulmonar, eletrocardiograma e testes laboratoriais. Nesta fase, houve a randomização.

A partir daí iniciou-se a fase de intervenção. O destreino seguiu a orientação de treinamento com zona < 75% da frequência cardíaca (FC) máxima (redução de intensidade) e com duração de horas/semana de treinamento correspondendo a 80% do que o atleta era habituado a treinar (redução de carga de 20%). Já o grupo controle manteve atividade física de alta intensidade (≥ 85% da FC máxima).

O desfecho primário foi a duração de tempo em que o indivíduo permanece em ritmo de FA em um determinado período. No caso, a duração de todos os episódios de FA com ≥ 30 segundos dividido pelo período total de monitorização.

Os critérios de inclusão foram idade ≥ 18 anos, documentação de FA paroxística, sendo praticantes profissionais ou recreativos de endurance (> 5 horas/semana de corrida/canoagem ou > 8 horas/semana de ciclismo/cross-country skiing, a combinação de ambos ou outras modalidades consideradas como endurance). Os atletas tinham que ter tido pelo menos 02 episódios de FA, sendo o último registrado nos últimos 06 meses.

Atletas com hipertensão arterial ou outros fatores de risco cardiovasculares foram excluídos para minimizar o impacto de fatores confundidores.

!!!!!!!: apenas à essa altura, enquanto redijo este texto para o blog, percebi que o estudo está em andamento e ainda não foi publicado (rsrsrsrsrsrs). Para não perder todo o conteúdo que já foi inserido aqui na publicação, vou aproveitar para trazer dados de outras publicações sobre como a ecocardiografia pode auxiliar nesse contexto de atleta de endurance e FA.

European Heart Journal – Cardiovascular Imaging (2020) 21, 1374–1383

Estudo que comparou achados ecocardiográficos entre atletas de endurance com e sem FA, bem como em não atletas com e sem FA com o objetivo de identificar os diferentes mecanismos implicados no surgimento da arritmia.

Além do strain do AE, a análise volumétrica (valores indexados) incluiu os seguintes parâmetros:

De forma geral, tanto atletas e não atletas com FA apresentaram um volume mínimo do AE maior comparado com aqueles sem FA. Ainda, os atletas com FA apresentaram uma fração de esvaziamento do AE e o índice de expansão do AE significativamente menores em relação aos atletas sem FA.

European Heart Journal – Cardiovascular Imaging (2020) 21, 1374–1383

O índice de rigidez atrial foi semelhante entre os atletas, porém maior entre não atletas com FA.

European Heart Journal – Cardiovascular Imaging (2020) 21, 1374–1383

Todos os atletas, com e sem FA, e os não atletas com FA apresentaram o strain do AE fase de reservatório (LASres) e fase de bomba (LASct) reduzidos quando comparados com não atletas sem FA.

European Heart Journal – Cardiovascular Imaging (2020) 21, 1374–1383

Importante destacar que todos os atletas, seja com ou sem FA, apresentaram os parâmetros convencionais de função diastólica preservados, com aumento do volume do AE proporcional ao remodelamento do VE (relação AE/VE).

O achado de um volume atrial mínimo maior nos atletas com FA, quando comparados com atletas sem FA (22.6 ± 5.6 x 19.2 ± 6.7 ml/m²), foi um dado importante. Esse parâmetro se relaciona com o momento do clico cardíaco em que o AE se expõe de forma direta a pressão diastólica final do VE e se mostrou mais sensível para avaliar disfunção do AE, nesta população, do que o volume atrial máximo.

Portanto, enquanto que o volume atrial máximo aumentado em atletas representa uma alteração adaptativa em reposta ao aumento do stroke volume dado pelo exercício, o aumento do volume atrial mínimo pode ser um marcador de uma função contrátil reduzida desta cavidade e significar “miopatia atrial“. Esse achados pode se associar a uma onda p prolongada na eletrocardiografia de atletas com FA sendo este um possível achado indicativo de disfunção elétrica atrial.

Contudo, temos que lembrar que o surgimento de FA nos atletas de endurance tem componente multifatorial, incluindo fibrose atrial, desbalanço autonômico e aumento de gatilhos ectópicos (extrassistolia).

Do ponto de vista de adaptação, o LASres reduzido em atletas indica que, mesmo com o aumento do volume do AE, há uma menor necessidade de deformação (maior eficiência!) em repouso para ejetar o fluxo sanguíneo para o VE e é possível que os atletas tenham a capacidade de aumentar o strain durante o esforço para atender ao aumento da demanda.

Contudo, esse benefício (boa perfomance atrial) é obtido às custas de um aumento do estresse parietal na parede do AE e isso pode ser um gatilho potencial na indução de fibrose atrial, fator de risco bem documentado para FA.

Como de conhecimento, o LASres e LASct reduzidos são fatores associados a um maior risco de desenvolver FA na população geral. Contudo, estes parâmetros parecem não ter o mesmo significado em relação ao risco de FA nos atletas, pois são achados esperados como adaptativos em indivíduos com treinamento de alta intensidade em modalidades de endurance. Tanto que não houve diferença nestes parâmetros entre os atletas com FA e sem FA avaliados no estudo.

Hubert et al. avaliou 27 atletas de endurance, do sexo masculino, considerados “veteranos” (> 35 anos de idade), com FA e os comparou com 30 outros atletas de endurance sem FA, mas com cargas de treino, idade e fatores de risco similares.

Neste estudo, os atletas com FA apresentaram um LASres menor comparados com o grupo controle*.

Eur Heart J Cardiovasc Imaging 2018;19:145–53

* Pelos valores de LASres encontrados muito provavelmente os participantes não apresentavam remodelamento cardíaco induzido pela atividade física, ou seja, não eram adaptados.

Portanto, a FA em atletas de endurance é INDEPENDETE da presença de disfunção diastólica ou da rigidez atrial (lembrem-se que o índice de rigidez foi semelhante entre atletas com e sem FA). A disfunção contrátil do AE (volume atrial mínimo aumentado) parece ser um fator diferenciador nesta população.

European Heart Journal – Cardiovascular Imaging (2020) 21, 1374–1383

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