Ecocardiografia do Esporte: diástole no atleta

A fase de enchimento do ventrículo esquerdo (VE) é um processo complexo que engloba variáveis como contratilidade ventricular, relaxamento ativo do miocárdio, complacência do VE, pressões de enchimento e frequência cardíaca (FC).

Quando falamos no remodelamento cardíaco induzido pela atividade física de alta intensidade, devemos entender que a função diastólica em atletas também é impactada pelas alterações hemodinâmicas e estruturais presentes nos corações de atletas.

European Heart Journal – Cardiovascular Imaging (2024) 25, 1537–1545

Já discutimos aqui no blog que em atletas de endurance frequentemente encontramos um padrão de diástole descrito como “super normal“, em que há uma melhora do enchimento ventricular precoce (aumento da onda A), contudo não observado em atletas de outras modalidades de treinamento, como por exemplo treinos de força.

Com o aumento da intensidade do exercício físico, o coração passa a ejetar maior volume de sangue por unidade de tempo e, com isso, há maior transferência de oxigênio para o sistema muscular, aumentando a fosforilação oxidativa mitocondrial. Este processo desempenha papel fundamental na determinação da capacidade aeróbica, definida como capacidade máxima de extração de O2 (VO2 máximo), parâmetro considerado como padrão ouro para avaliação da capacidade cardiorrespiratória.

European Heart Journal – Cardiovascular Imaging (2024) 25, 1537–1545

O aumento das câmaras cardíacas e o subsequente aumento da capacidade do coração de gerar um volume sistólico ejetado maior (levando ao aumento do débito cardíaco) é o marco característico do padrão de adaptação nos atletas de endurance.

Já nos atletas de força, em reposta ao aumento da pós carga pelo aumento da resistência vascular periférica, há tendência a um padrão de adaptação concêntrica e pouco (ou nenhum) aumento cavitário.

Portanto, as demandas fisiológicas relacionadas aos diferentes tipos de estímulos devem ser consideradas para a interpretação dos achados ecocardiográficos em indivíduos que realizam atividade física de alto rendimento. Até aqui, nenhuma novidade! Mas e para a avaliação da diástole, esta regra também se aplica?

European Heart Journal – Cardiovascular Imaging (2024) 25, 1537–1545

Sabemos que a função diastólica se relaciona, de forma direta, com perfomance. Com o aumento da FC, há menor tempo disponível para o enchimento ventricular (tempo de diástole reduzido), requerendo uma maior eficiência nos mecanismos de enchimento do VE.

De acordo com a Lei de Laplace, a tensão numa parede se relaciona com a espessura da mesma e com o raio da cavidade. Partindo deste conhecimento, fica fácil entender que o estresse na parede do AE pela sobrecarga volumétrica induzida pela atividade física é maior que o estresse no VE, já que a parede do AE apresenta menor espessura, explicando o motivo pelo qual frequentemente observamos dilatação atrial em atletas.

No processo de diástole, alterações em qualquer um dos seguintes mecanismos podem levar a um padrão de disfunção: capacidade de “sucção” na fase de diástole precoce pelo VE; o processo ativo de relaxamento ventricular esquerdo; e complacência do VE.

De acordo com as diretrizes atuais, a disfunção diastólica em repouso e em pacientes com fração de ejeção (FE) > 50% se caracteriza pela presença de mais de 50% das seguintes variáveis:

  • e´ septal < 7 cm/s ou e´ lateral < 10 cm/s;
  • E/e´ > 14;
  • Volume indexado do AE > 34 ml/m²;
  • Velocidade máxima do refluxo tricúspide > 2,8 m/s.

Aqui temos o primeiro ponto de observação: o valor de 34 ml/m² como limite para considerar aumento do átrio esquerdo não deve ser levado “ao pé da letra” para atletas, uma vez que muito frequentemente vamos observar aumento atrial nos indivíduos com alta carga de treino isotônico.

Alguns estudos já demonstraram uma forte correlação entre a velocidade da onde e´ e a taxa de relaxamento do ventrículo esquerdo (avaliada de forma invasiva). Tanto o relaxamento do VE e a capacidade de enchimento ventricular na diástole precoce são fatores determinantes para a taxa de untwisting (mecanismo de contratorção), parâmetro sensível de função diastólica.

Os achados mais comumente observados em atletas, durante o repouso, são maiores relações E/A (atletas de endurance), maiores valores de E/e´, maior tempo de relaxamento isovolumétrico e tempo de desaceleração do influxo mitral, enquanto que a velocidade máxima do refluxo tricúspide tende a não se modificar.

European Heart Journal – Cardiovascular Imaging (2024) 25, 1537–1545

D´Andrea observou valores significativamente maiores, em repouso, das velocidades e´ septal e e´ lateral, com médias > ou igual a 16 cm/s na maioria dos 650 atletas avaliados.

European Heart Journal – Cardiovascular Imaging (2024) 25, 1537–1545

O presente estudo, sugere pontos de corte diferentes para alguns parâmetros ecocradiográficos para indicar disfunção diastólica em atletas:

  • Espessura diastólica do VE: homem ≥ 14 mm / mulher 13 mm;
  • Fração de Ejeção do VE: < 45-50%;
  • Strain Global Longitudinal: > -14%;
  • Velocidade e´: < 7-9 cm/s;
  • E/e´: >15;
  • Velocidade máxima do refluxo tricúspide: > 2,8 m/s;
  • Strain AE fase de Reservatório: < 21%.
European Heart Journal – Cardiovascular Imaging (2024) 25, 1537–1545

NOTA PESSOAL: baseado nos conteúdos postados aqui no blog, temos que entender que o atleta apresenta uma maior capacidade de escoamento (aumento do volume de conduto – quantidade de sangue drenado pelas veias pulmonares e que passa diretamente para o VE, sem permanecer no interior do AE), não necessitando da função de reservatório.

Isso ocorre pelo menor tempo de diástole durante o esforço físico, exigindo que o coração adote mecanismos para suportar o aumento da pré-carga e, consequentemente, consiga um maior volume sanguíneo durante o enchimento ventricular na fase inicial da diástole. Isso se traduz por um aumento da velocidade da onde E.

Como grande parte do volume já passou para o VE, o átrio esquerdo não precisará utilizar a fase de contração ativa (fase de bomba) para suprir o VE e, portanto, encontramos velocidades reduzidas de onda A, fazendo com que haja relações E/A supra normais.

Sabemos, contudo, que com o passar da idade, o VE vai perdendo complacência. Para manter a eficiência da diástole, os atletas passam a apresentar maior deformação da cavidade atrial, com consequente aumento do strain de fase de reservatório, sem ainda necessitar do componente de bomba para “suprir” o VE.

Em fases mais tardias (atleta master) o enchimento ventricular rápido vai perdendo cada vez mais protagonismo e a fase ativa, ou seja, fase de bomba começa a “assumir a responsabilidade”. É neste momento que o atleta passa a apresentar perda de performance (aquele jogador de futebol que já passou dos 34 anos de idade e que precisa ser substituído na metade do segundo tempo da partida por cansaço).

Portanto, para avaliar diástole em atletas é fundamental a análise do strain do átrio esquerdo e acrescentaria uma variável muito importante e que não foi citada no artigo: análise do strain rate precoce (onda E).

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