As próteses valvares, mecânicas ou biológicas, são opções terapêuticas amplamente utilizadas no tratamento das disfunções valvares. O avanço tecnológico, e consequente aperfeiçoamento do desenho e do perfil hemodinâmico das próteses, tem sido responsável por uma redução significativa na ocorrência de disfunção protética.
No entanto, todas as próteses valvares continuam sujeitas à ocorrência de complicações, de gravidade variável, devendo esta possibilidade ser sempre considerada na avaliação clínica individualizada da relação custo/benefício em pacientes candidatos a substituição valvar.
E quando estamos diante de uma situação como essa (vídeo), a avaliação ecocardiográfica é crucial para o (1) entendimento do tipo de disfunção, (2) graduação da repercussão hemodinâmica e (3) tentar identificar o agente causador da disfunção.
Apesar de incomum nos dias atuais, a presença de perda de mobilidade de um dos elementos móveis de uma prótese mecânica (stuck leaflet) é uma complicação possível após a cirurgia, sobretudo no pós operatório tardio.
Complicação quase que exclusiva das próteses mecânicas (embora também possa ocorrer nas biológicas), as causas desse tipo de complicação podem ser variadas, então vou trazer aqui o resumo de um artigo com diferentes possibilidades.
CASO 01: mulher, 65 anos de idade, admitida no pronto socorro com queixa de dispneia. Tinha histórico de troca valvar mitral, via cirurgia robótica minimamente invasiva, com prótese mecânica em razão de cardiopatia reumática. O procedimento preservou o folheto posterior da valva mitral.
Ecocardiograma transtorácico mostrou aumento do gradiente transprotético e o exame transesofágico mostrou restrição de mobilidade de um dos componentes móveis, próximo ao ânulo valvar posterior, com fluxo apresentando gradientes máximo de 29 mmHg e médio de 16 mmHg.
Apesar de prótese apresentar aumento da ecogenicidade, não foram identificados trombo, vegetação ou massas. Á fluoroscopia, a restrição de mobilidade ficou ainda mais visível. A paciente apresentava INR dentro da faixa nos últimos 06 meses e foi submetida, então, a novo procedimento cirúrgico.
Durante a cirurgia, foi observado presença de crescimento tecidual excessivo na face atrial da prótese, com restrição total do disco posterior. Não havia envolvimento com tecido subvalvar. Foi realizada troca por nova prótese mecânica.
CASO 02: mulher, 74 anos de idade, com queixa de dispneia e piora progressiva da capacidade funcional. Tinha passado de dupla troca valvar com próteses mecânicas mitral e aórtica por doença reumática.
Ecocardiograma transtorácico mostrou gradiente máximo de 88 mmHg e médio de 55 mmHg em prótese aórtica. Não foram observados trombos em nenhuma das próteses no ecocardiograma transesofágico, contudo foi notado que havia aumento da espessura do tecido valvar, sobretudo na prótese aórtica. Durante a fluoroscopia, um dos discos da prótese aórtica se mostrou fixo.
A hipótese, portanto, foi de folheto (no caso, disco) com restrição total de mobilidade por presença de pannus e nova cirurgia foi indicada, contudo a paciente recusou esta possibilidade.
Neste contexto, a faixa de INR foi mantida em 3,0-3,5 para tratar possíveis micro trombos que, eventualmente, não tenham sido detectados pela ecocardiografia, além da associação com AAS.
Durante o seguimento clínico, o gradiente transprotético aórtico reduziu (máximo de 57 mmHg e médio de 34 mmHg). Novos exames (ecocardiograma e fluoroscopia) mostraram reestabelecimento da mobilidade dos elementos móveis da prótese aórtica.
O mecanismo fisiopatológico da disfunção valvar considerado foi a associação de pannus com micro trombos dada a resposta ao tratamento clínico.
CASO 03: homem, 67 anos de idade, admitido no pronto socorro com insuficiência cardíaca descompensada e baixo débito. Tinha antecedente de troca valvar mitral por prótese mecânica em razão de cardiopatia reumática (sempre ela!) em 1999 e necessidade de retroca valvar por nova prótese mecânica em 2014 por crescimento excessivo de pannus.
Ecocardiograma transtorácico mostrou gradientes máximo de 39 mmHg e médio de 24 mmHg na prótese mitral, regurgitação tricúspide severa com PSAP estimada em 90 mmHg, além de disfunção e aumento do ventrículo direito (VD).
No estudo transesofágico foi observado restrição de mobilidade de um dos elementos móveis, com gradiente máximo da prótese mitral de 40 mmHg e médio de 21 mmHg.
Não havia trombo, porém, mais uma vez, foi notado aumento do crescimento tecidual por pannus causando restrição de mobilidade. Fluoroscopia mostrou que um dos elementos móveis da prótese estava com restrição total de mobilidade.
O paciente evoluiu com piora clínico e foi a óbito antes da realização de nova cirurgia.
CASO 04: mulher, 57 anos de idade, com queixa de dispneia progressiva iniciada nos últimos 03 meses. Tinha histórico de troca valvar mitral há 09 anos deste atendimento.
Ecocardiograma transtorácico mostrou aumento dos gradientes transprotéticos e, no estudo transesofágico, foi observado restrição de mobilidade do disco anterior da prótese mecânica mitral, com gradiente máximo de 29 mmHg e médio de 12 mmHg.
Não havia vegetação ou trombo, mas apenas espessamento valvar, sendo, portanto, pannus a causa da disfunção. Nova cirurgia foi, então, indicada.
Disfunção de prótese mecânica é evento cada vez mais raro, contudo normalmente cursa com grande gravidade, sendo a trombose de prótese, formação de pannus, vegetação ou envolvimento com tecido subvalvar as causas mais comuns.
A trombose de prótese mecânica é documentada como causa de 0.5-8% dos casos de disfunção, com diferentes possibilidades terapêuticas, como anticoagulação, uso de trombolíticos ou tratamento cirúrgico.
Outra causa frequente é a formação/crescimento de pannus, causada por uma reação inflamatória não imune do organismo em razão da prótese, com proliferação de tecido fibroelástico e colágeno, sendo esse processo iniciado em algum ponto de sutura.
Normalmente ocorre na face ventricular da prótese e tem como fatores de risco a técnica operatória empregada, anéis valvares pequenos, pacientes jovens, baixo débito cardíaco, fluxo turbulento, infecção e anticoagulação inadequada.
O grande desafio, neste contexto, é diferenciar pannus de trombo. Normalmente, à ecocardiografia, o pannus se apresenta como imagem densa, não móvel, sem massas associadas. Além disso, a tomografia cardíaca pode auxiliar ao documentar presença de tecido com alta atenuação, maior que a do septo interventricular, com HU > ou igual a 145 unidades.
Outra causa possível é a endocardite infecciosa, apesar de rara. Pode observa-se, de forma associada, presença de deiscência da prótese, abscesso paravalvar. Neste caso, a regurgitação protética é mais comum que a restrição de mobilidade.
O envolvimento com tecido subvalvar também é causa de disfunção de prótese mecânica por restrição de mobilidade. A preservação do tecido subvalvar, sobretudo do folheto posterior é técnica recomendada nos casos de troca valvar mitral. A vantagem, nestes casos, é a manutenção da geometria ventricular esquerda, com melhora da sobrevida no pequeno e longo prazos.
Contudo, existem riscos associados: obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo quando o envolvimento se dá com o subvalvar do folheto anterior. Obstrução intermitente quando há envolvimento com cordoalhas tendíneas.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.
Somente queria ter um filho assim, parabéns! sou admirador de quem cuida da vida.