Dois grandes mestres me incentivaram a estudar fisiologia. O Dr. Horácio Cingolani, meu professor de fisiologia da Universidade Nacional de La Plata, Argentina, que posteriormente foi meu orientador de tese de doutoramento e o Professor Egas Armelin, do Hospital das Clínicas da USP, quem me inculcou o estudo da contratilidade miocárdica, da física, da matemática e da hidráulica. A eles dedico, “in memorian” estas breves líneas.
Sabia que…
A teoria que estabelece que o débito cardíaco é regulado pelo volume de enchimento da cavidade, ou seja, a lei de Frank-Starling foi publicada pela primeira vez pelo fisiologista italiano Dario Maestrini em 1914? (1).
Sabia que a lei de Frank-Starling foi postulada em 1918 baseado nos estudos em corações de râs de Otto Frank, realizados em 1895 e em observações do próprio Starling em corações de cães, em 1914? (2) .
Sabia que, revisando os mecanismos adaptativos das câmaras ventriculares ao aumento do volume de enchimento (pré-carga ou volume diastólico final), há evidências que o mecanismo de Frank-Starling pode não ser o responsável pela adaptação volumétrica das câmaras ventriculares a longo prazo, onde a manutenção do inotropismo obedece ao mecanismo conhecido como autorregulação homeométrica, postulado por Gleb von Anrep em 1912? (3).
Explicando…
O coração está continuamente sob influência nervosa, hormonal e eletrofisiológica, mas, apesar disso, o músculo cardíaco apresenta mecanismos intrínsecos para adaptar o débito cardíaco às mudanças das condições hemodinâmicas. Um aumento no volume diastólico final do ventrículo esquerdo, causado pelo aumento da resistência aórtica à ejeção (pós-carga) ou pelo aumento do retorno venoso (pré-carga), imediatamente leva a uma contração mais potente. Este é o conhecido mecanismo de Frank-Starling, que permite ao coração aumentar seu débito após um aumento na pré-carga, ou mantê-lo apesar de uma pós-carga maior. No entanto, após esse aumento inicial na contratilidade e ao longo dos 10 a 15 minutos após um alongamento repentino, o desempenho do miocárdio continua a aumentar. Von Anrep, após pinçar a aorta ascendente de um cão (diminuindo agudamente o fluxo de saída e aumentando as pressões intraventriculares), mostrou dilatação inicial do VE, mas que foi seguido por um declínio progressivo no volume diastólico final ao longo dos minutos seguintes, voltando ao volume inicial. Esta descoberta foi interpretada como secundária a o efeito inotrópico positivo devido à liberação de catecolaminas pelas glândulas suprarrenais, que estavam recebendo baixo fluxo sanguíneo. Esta teoria foi posteriormente descartada. Acredita-se que a rápida mudança na força seja a base para o mecanismo de Frank-Starling e é principalmente causada por aumento do fluxo de Ca++ nos miofilamentos. A resposta de força lenta à mudança no comprimento, proposta como o equivalente in vitro do fenômeno Anrep, é devida a um aumento progressivo da quantidade transitória de Ca++, conforme demonstrado em 1982 (4) e posteriormente confirmado por outros autores (5)
Fisiologicamente, o efeito Anrep constitui um mecanismo poderoso pelo qual o coração se adapta a um aumento da pós-carga, ocorrendo após a lei de Frank-Starling e mantendo seus efeitos a longo prazo.
Ao contrário da lei de Frank-Starling, que postula que o aumento da ejeção ventricular depende do volume diastólico final prévio, ou seja, do estiramento das miofibrilas, Anrep postula que a manutenção da ejeção ventricular com aumento da carga depende da adaptação da função sistólica, mediada pelo influxo de Ca++ na célula.
Uma forma de avaliar o efeito Anrep é através do acoplamento ventriculoarterial, ou seja, correlacionar as modificações de pressão e volume ventricular (elastância ventricular, Ees) e as modificações de pressão e volume arterial (elastância arterial, Ea). Ees representa a contratilidade ventricular e Ea representa a força que se opõe a ejeção ventricular, ou pós-carga.
Este tema já foi tratado para o VD no nosso blog:
Referências.
- Maestrini, D. (November 1951). “[The law of the heart in biology and clinical medicine.]”. Minerva Med. 42 (80): 857–64. PMID14919226
- Starling EH. The linacre lecture on the law of the heart given at Cambridge, 1915. Nature. 1918;101:18. doi: 10.1038/101018a0.
- von Anrep G. On the part played by the suprarenals in the normal vascular reactions of the body. J Physiol 45: 307–317, 1912.
- Allen DG, Kurihara S. The effects of muscle length on intracellular calcium transients in mammalian cardiac muscle. J Physiol 327: 79–94, 1982.
- Alvarez BV, Perez NG, Ennis IL, Camilion de Hurtado MC, Cingolani HE. Mechanisms underlying the increase in force and Ca2+ transient that follow stretch of cardiac muscle: a possible explanation of the Anrep effect. Circ Res 85: 716–722, 1999.
- Guinot PJ, Andrei S, Longrois D. Ventriculo-arterial coupling: from physiological concept to clinical application in peri-operative care and ICUs. Eur J Anesthesiol Intensive Care 2022; 1(2):P e004. DOI 10.1097/EA90000000000000004.
É doutor em medicina, especialista em Cardiologia (SBC) e especialista em Ecocardiografia.
Curriculum completo disponível na Plataforma Lattes
(http://lattes.cnpq.br/4922446519082204)