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COVID-19 e Strain: impacto prognóstico

A compreensão evolutiva da COVID-19, inicialmente identificada como uma síndrome respiratória aguda, foi expandida por estudos que revelaram implicações cardiovasculares significativas.

Isto levantou questões pertinentes sobre se a presença de condições cardiovasculares preexistentes seria um fator de risco para a severidade e mortalidade da COVID-19, sugerindo um perfil de vulnerabilidade em pacientes afetados, ou se a infecção pelo SARS-CoV-2 poderia induzir complicações cardiovasculares mesmo em indivíduos sem uma história de doenças cardíacas.

Nesse contexto, a ecocardiografia bidimensional no manejo de pacientes com COVID-19 é particularmente útil, especialmente dada a prevalência de envolvimento miocárdico nessa infecções.

Dentro da aplicação da avaliação ecocardiográfica, o uso de técnicas avançadas, como o strain, poderia trazer informações adicionais e mais sensíveis, com o objetivo de identificar aqueles sob maior risco de evolução desfavorável e, portanto, servindo como uma variável prognóstica ???

Esta foi justamente a tese de mestrado do Dr. João Giffoni, professor da ECOPE, recentemente publicada no ABC Imagem Cardiovascular.

Arq Bras Cardiol: Imagem cardiovasc. 2024; 37(4):e20240067

Estudo longitudinal, observacional e prospectivo que avaliou pacientes internados por infecção por COVID-19 nas UTIs do Hospital Geral de Nova Iguaçu (RJ) no período de 28/03 a 30/12 de 2020.

Os critérios de internação nessas unidades incluíram sinais de gravidade (seguindo as orientações do Protocolo de Manejo Clínico para COVID-19 na Atenção Especializada do Ministério da Saúde, conforme versão eletrônica da 1ª edição revisada de 2020) e necessidade de ventilação mecânica.

Todos os participantes do estudo foram submetidos à análise ecocardiográfica em até 48h após a admissão e, além disso, também realizaram tomografias computadorizadas (TC) dos pulmões (também dentro das primeiras 48h de internação). Os pacientes foram monitorados durante toda a internação quanto ao desfecho final intra-hospitalar (alta, óbito ou transferência).

Foram considerados graves os pacientes que demonstrassem alguma das seguintes características: (1) insuficiência respiratória, (2) alterações hemodinâmicas, (3) alterações do nível de consciência, (4) coagulopatias e (5) imagem de tórax com extenso envolvimento pulmonar.

Foram excluídos pacientes que receberam alta hospitalar ou faleceram antes da realização do ecocardiograma ou aqueles que foram transferidos para outro hospital em algum momento do estudo. Pacientes que não possuíam imagens ecocardiográficas adequadas para análise através de speckle tracking também foram excluídos.

Arq Bras Cardiol: Imagem cardiovasc. 2024; 37(4):e20240067

A análise da fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) foi realizada pela técnica biplanar de Simpson, por meio das incidências 4C e 2C, e a análise do strain longitudinal global do ventrículo esquerdo (SLGVE) nas janelas 4C, 2C e 3C. Os pontos de corte valores anormais utilizados foram: FEVE < 52% para homens e < 54% para mulheres; e SLGVE < 18% para ambos os sexos.

A função ventricular direita foi analisada pela excursão sistólica do plano do ânulo tricúspide (TAPSE), por meio do corte apical 4C com ênfase nas câmaras direitas, com valores de corte anormais de < 17 mm. Além disso, o strain longitudinal global do ventrículo direito (SLGVD) também foi analisado off-line usando EchoPAC Software Only v 202, com valores de corte anormais de < 20%.

Arq Bras Cardiol: Imagem cardiovasc. 2024; 37(4):e20240067

Um total de 174 pacientes foram analisados durante o estudo. Destes, 24 não apresentavam imagem ecocardiográfica adequada para o estudo da deformação miocárdica, correspondendo a 13,8% do total. A taxa de mortalidade intra-hospitalar entre os avaliados foi de 64%.

Arq Bras Cardiol: Imagem cardiovasc. 2024; 37(4):e20240067

A média de idade, entre os 150 pacientes do estudo, foi de 56 ± 14 anos, sendo 77 (51,3%) do sexo masculino. A maioria (77,3%) dos pacientes apresentou mais de 50% de comprometimento pulmonar. Em relação à comorbidades, a hipertensão arterial sistêmica (HAS) foi a mais prevalente (84%), seguida da obesidade (41,3%) e do diabetes mellitus – DM (34%).

Arq Bras Cardiol: Imagem cardiovasc. 2024; 37(4):e20240067

Os pacientes que foram à óbito apresentaram maior média de idade (59 ± 15 x 50 ± 12 anos, p < 0,001) e mais comorbidades em relação aos que receberam alta. Houve uma clara diferença na idade e comorbidades quando os dois grupos (óbito x alta) foram comparados em análise univariada.

Contudo, após análise de regressão multivariada dos parâmetros demográficos, apenas a presença de mais de 50% de acometimento pulmonar, na TC de tórax, permaneceu como fator preditor independente de mortalidade hospitalar.

Arq Bras Cardiol: Imagem cardiovasc. 2024; 37(4):e20240067

Os pacientes que foram à óbito apresentaram maiores dimensões ventriculares e menor FEVE em relação aos pacientes que receberam alta. Apenas 36% dos pacientes que morreram tinham FEVE anormal, enquanto que apenas 2% dos pacientes que receberam alta apresentavam FEVE anormal.

Arq Bras Cardiol: Imagem cardiovasc. 2024; 37(4):e20240067

Considerando um ponto de corte de 40% para FEVE, 16% dos pacientes que foram à óbito apresentaram alteração, enquanto nenhum dos egressos apresentou essa condição (p = 0.002).

Arq Bras Cardiol: Imagem cardiovasc. 2024; 37(4):e20240067

Entre os pacientes que morreram, 30% apresentaram aumento do diâmetro basal do ventrículo direito (VD), em contraste com apenas 1,85% dos pacientes que receberam alta hospitalar que apresentaram o mesmo aumento.

Em relação ao diâmetro diastólico do VE (DDVE), 26% dos falecidos apresentaram valores elevados para esse parâmetro, enquanto entre os que receberam alta, apenas 3,7% tiveram aumento do DDVE. Esses dados sugerem correlação entre o aumento dessas medidas e um resultado negativo durante a hospitalização por COVID-19.

A comparação do SLGVE revelou valores menores nos pacientes que morreram (15,3 ± 2,3 x 19,7 ± 1,8, p < 0.001). Da mesma forma, o SLGVD também foi menor nos pacientes que foram à óbito (21,9 ± 4,9 x 28,0 ± 3,2, p < 0.001).

A análise multivariada de Cox indicou que apenas o SLGVE e mais de 50% de comprometimento tomográfico permaneceram como variáveis preditoras prognósticas independentes.

Arq Bras Cardiol: Imagem cardiovasc. 2024; 37(4):e20240067

Notadamente, nenhuma das variáveis ecocardiográficas convencionais emergiu como preditora independente de prognóstico após análise multivariada.

O ponto de corte de – 18,1% foi utilizado para o SLGVE na construção das curvas de sobrevida intra-hospitalar (p < 0.001; IC: 0,53 – 0,23).

Arq Bras Cardiol: Imagem cardiovasc. 2024; 37(4):e20240067

O estudo demonstra, portanto, que o SLGVE emergiu com um marcador prognóstico independente em pacientes hospitalizados em UTIs devido à COVID-19.

Em estudos que avaliaram a deformação miocárdica do VE em pacientes com COVID-19, Bhatia et al (22) demonstraram que, embora os parâmetros ecocardiográficos convencionais sejam importantes, eles podem não ser suficientes. Nesses estudos, apesar da FEVE normal, os pacientes com maior gravidade apresentaram redução significativa do SLGVE.

Outro ponto importante e que deve ser considerado na análise dos dados é o momento em que o ecocardiograma foi realizado. Park et al. (Am Heart J Plus. 2021;6:100018) concluíram que o valor de strain do VE < 13,8% era um preditor independente de mortalidade em pacientes hospitalizados, com sensibilidade de 85% e especificidade de 54%. Era também um forte marcador de sobrevivência. Contudo, o momento da análise ecocardiográfica neste estudo não foi especificado, o que poderia explicar a diferença em relação aos dados apresentados no trabalho do Prof. João Giffoni.

Rothschild et al. (JACC Cardiovasc Imaging . 2020;13(11):2471-4), por sua vez, definiram o valor de deformação do VE de 16,6% como preditor de mortalidade e necessidade de intubação em pacientes internados. Neste estudo, o ecocardiograma foi realizado nas primeiras 24h de internação.

Os autores concluem, portanto, que a ecocardiografia bidimensional convencional tem valor limitado para o rastreamento de rotina em pacientes hospitalizados com COVID-19, não apresentando variáveis que poderiam contribuir para uma análise prognóstica. Mesmo quando essas variáveis apresentam significância estatística, encontram-se dentro da normalidade, levando a ambiguidade interpretativas.

Neste contexto, o SLGVE apresenta altos níveis de sensibilidade e especificidade, sendo uma ferramenta confiável para avaliação prognóstica em pacientes hospitalizados em estado grave com infecção por COVID-19.

NOTA DO AUTOR – Prof. João Giffoni: à época em que o estudo foi conduzido, muito se falava sobre o impacto da HAS como fator preditor de mortalidade nos pacientes graves com COVID-19. O que foi observado, após a análise dos dados, porém, é que a disfunção ventricular subclínica, avaliada pelo strain, foi uma variável de impacto prognóstico, mesmo naqueles pacientes hipertensos e com FEVE normal. Portanto, aqueles com strain limítrofe (valores entre 18-16%), independente da presença de comorbidades sistêmicas, são os de maior risco para desfechos desfavoráveis.

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