Os esteroides anabolizantes (EA) fazem parte de um grupo de moléculas androgênicas, provenientes da testosterona (produção endógena) e de seus derivados sintéticos.
Essas substâncias tem o uso aprovado por diferentes entidades de regulação (por exemplo, FDA nos EUA) para situações específicas e limitadas como hipogonadismo, alguns tratamentos oncológicos, anemia por falência medular, entre outros.
O que acontece, atualmente, é que o uso dessas substâncias em doses suprafisiológicas ultrapassou o universo esportivo de alta perfomance (dopping) e adentrou no meio estético, sob diferentes adjetivações (“chip da beleza”, “anti envelhecimento” e por aí vai…). Na verdade sabemos que o objetivo é um só: um caminho mais fácil para o ganho de massa muscular e melhora estética (o famoso “shape“).
Nesse contexto de uso não terapêutico e em doses suprafisiológicas, os efeitos colaterais são praticamente uma constante nesses usuários. Do ponto de vista cardiovascular, logo nos vem à cabeça o efeito pró trombótico e a hemoconcentração, criando um cenário muito propício para síndrome coronariana aguda em pacientes jovens.
Porém, digamos que isso seria apenas a ponta do iceberg. Os danos cardiovasculares vão muito além e podem resultar em cardiomiopatias graves, cursando com disfunção (bi)ventricular. Vamos entender como isso acontece ?
INJÚRIA MIOCÁRDICA: acredita-se que aproximadamente 3% dos usuários de EA apresentem episódio de síndrome coronariana aguda (SCA) em idade jovem. E isso acontece por uma série de fatores relacionados ao uso indiscriminado dessas substâncias.
Esses pacientes desenvolvem aterosclerose em idades precoces, com aumento significativo dos níveis de LDL e redução de HDL. O efeito dos EA nos lipídios é dose dependente e essas alterações acabam resultando em formação de placas ateroscleróticas de maior volume (quando comparados com indivíduos não usuários). Além disso, quanto maior o tempo de exposição à essas substâncias, maior o volume das lesões, indicando um processo contínuo e progressivo.
Apesar de haver evidências demonstrando que a testosterona em níveis fisiológicos tem ação vasodilatadora, o mesmo não é observado quando em doses suprafisiológicas. O aumento de noradrenalina, angiotensina II e tromboxano relacionados ao excesso desse hormônio favorece vasoconstrição e pode levar a quadros de vasoespasmo.
RISCO DE TROMBOSE: os EA aumentam o risco de eventos trombóticos ao interferir na via das prostaglandinas, aumentado a agregação plaquetária em regiões de injúria endotelial. Há também um estímulo à síntese de fatores pró-coagulantes e à hemoatopoiese, elevando ainda mais o risco de formação de trombo.
DISFUNÇÃO ENDOTELIAL: há uma alteração do tecido arterial, com redução de elastina e aumento de colágeno, bem como de outras proteínas fibrosas. Ainda, já está bem documentado a presença de hiperreatividade vascular, com aumento do tônus vascular pela inibição da síntese de óxido nítrico.
Estado pró-trombótico + aterosclerose precoce + disfunção endotelial = dano miocárdico irreversível !
HIPERTROFIA VENTRICULAR ESQUERDA: o uso de EA se associa a um aumento de massa ventricular esquerda. Os cardiomiócitos possuem receptores androgênicos, porém outras vias também levam ao aumento da espessura do músculo cardíaco.
Através do sistema renina-angiotensina-aldosterona, por (1) aumento da pressão arterial, (2) ação direta da angiotensina II na célula muscular cardíaca pelos receptores AT-1 e (3) pelos efeitos mediados pela aldosterona (aumento do estresse oxidativo, inflamação e fibrose), há formação de hipertrofia e fibrose miocárdica. O uso crônico de EA, por sua vez, ativa um mecanismo de “upregulation” dos receptores AT-1, que causam hipertrofia e fibrose independente do aumento da pós-carga.
Apesar de haver uma hipertrofia miocárdica, isto não se traduz em melhora da eficiência contrátil e performance. Pelo contrário! Boa parte de massa ventricular aumentada é resultado de tecido celular desorganizado e rico em fibrose, em proporcionalidade muito maior que ao número de células musculares, digamos, “normais”.
A hipertrofia miocárdica induzida pelo uso dos EA também leva à disfunção do sistema elétrico de condução do coração, resultando em uma contração menos vigorosa e um potencial arritmogênico.
A combinação de treinamento de alta intensidade e uso de EA sabidamente aumenta a atividade hidrolítica de enzimas lisossomais e a concentração de colágeno na parede do ventrículo direito (VD). Isso se traduz em fibrose, documentada em análises de biópsia de VD.
A combinação de todas essas alterações pode levar a um quadro de disfunção ventricular, com acometimento inclusive do VD, e desenvolvimento de uma cardiomiopatia que se comporta de forma muito semelhante ao que observamos na cardiotoxicidade por quimioterápicos.
Embora esses efeitos sejam dose/dependente e também tenham relação direta com o tempo de uso dessas substâncias, é possível, através da análise ecocardiográfica com recursos avançados, identificar o dano cardíaco numa fase muito inicial. Isso certamente permitirá a instituição de tratamento adequado de forma bastante precoce, aumentando a eficácia terapêutica.
Quanto à reversibilidade dos danos cardíacos, algumas variáveis são determinantes neste sentido: tipo de substância, duração de uso, doses utilizadas, predisposição genética. Os resultados, até aqui, são distintos e cada caso tem suas particularidades.
Graduado em medicina pela Universidade Potiguar (UnP). Possui residência em Clínica Médica, pelo Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL (UFRN), e em Cardiologia, pelo Procape – UPE. Porta o título de especialista em Cardiologia, pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). E é pós-graduado em Ecocardiografia, pela ECOPE.